O terceiro setor que temos e o que queremos

Autor: Filomena Araújo

O terceiro setor que temos e o que queremos

Importa refletir neste momento que terceiro setor queremos em Portugal.

Este último ano fez sobressair o setor social como prioritário para uma resposta de urgência da sociedade, mas sem que isso se reflita, até ao momento, na articulação com os principais ministérios envolvidos.

Verificou-se ao longo deste tempo de pandemia que há fortemente enraizada uma grande dificuldade dos ministérios em trabalhar articuladamente em prol da sociedade portuguesa.

Senão vejamos, a informação a “conta-gotas” para o setor social ao longo do último ano pelo ministério da saúde e o ministério da segurança social. Sabemos que a saúde não tem um envolvimento aprofundado no setor social como o ministério do Trabalho e Segurança Social, o que por si justificaria uma forte articulação entre os dois ministérios. Infelizmente essa articulação foi reduzida e por vezes nula, resultando em informações fora de tempo, pouco precisas ou mesmo desadequadas à realidade no terreno.

grande dificuldade dos ministérios em trabalhar articuladamente

Quando no terreno se verificou a necessidade de “arregaçar mangas” para apoiar os que precisavam, as IPSS não tiveram dúvidas em dar o máximo possível de si próprios em benefício dos outros.

Este esforço tem sido reconhecido por vários quadrantes da nossa sociedade, mas uma vez mais, continuam a existir vozes discordantes contra um sector que tanto deu e continua a dar para as comunidades onde se inserem.

Esta reflexão leva-nos a questionar o que se pretende do futuro deste setor, como deve continuar a ser o trabalho meritório desenvolvido pelas IPSS, muitas vezes sem reconhecimento ou sem obter o devido apoio para o mesmo.

O terceiro setor não pode continuar a ser apenas o suporte social em tempos de crise (como o foi na crise de 2008 e agora neste tempo difícil) e desvalorizado e esquecido em tempos mais calmos.

O estudo desenvolvido pelos professores Filipe Pinto e Filipe Martins da UCP-Porto (Ates - Área Transversal da Economia Social), veio confirmar que as IPSS tudo fizeram durante este tempo de pandemia para ajudar a sua comunidade envolvente. Apesar de muitas, antes do início da crise, estarem com uma situação financeira difícil, não foi impeditivo de tudo fazerem para apoiar quem mais precisava.

Perante o atrás referido, qual o futuro das IPSS, principalmente as de reduzidas dimensões, com protocolos que não são suficientes e que se inserem em comunidades com parcos recursos?

O nosso país possui características únicas no apoio social desenvolvido pelo terceiro setor. Podemos referir aquilo que foi visível para todos durante esta pandemia, apesar do número de mortos em lares de idosos, o que se lamenta profundamente, não podemos deixar de comparar Portugal com os outros países vizinhos da europa, como a Espanha, França ou Itália, onde o número de mortos em lares de idosos (em percentagem) foi mais elevado do que em Portugal.

Espanha, França ou Itália, onde o número de mortos em lares de idosos (em percentagem) foi mais elevado do que em Portugal.

Esta reflexão foi feita pelo Padre Lino Maia, presidente da CNIS, no Jornal Solidariedade de 10 de março. Ele refere que esta diferença prende-se com o tipo de resposta social que temos, onde a comunidade está envolvida nas diversas Instituições, seja de apoio à infância, aos idosos, às pessoas com deficiência, aos sem-abrigo, toxicodependências, violência doméstica ou qualquer outra resposta necessária à comunidade.

É nas IPSS da sua comunidade que as pessoas fazem voluntariado, vão participar em eventos de apoio, utilizam as várias valências existentes (desde a creche ao ERPI), sempre numa lógica de proximidade e de apoio solidário. São por isso reconhecidas como sendo “suas”, da sua comunidade. Ora, este tipo de ligação afetiva com as instituições, mesmo que não aconteça com todas, leva a que as respostas sejam mais rápidas e eficazes do que se geridas pelo Estado.

Sabemos que o modelo de Instituição de Solidariedade Social que Portugal possui, é único e por isso mesmo deve ser apoiado e acarinhado pela comunidade, mas, principalmente, pelo Estado, enquanto responsável pelo bem-estar do seu povo.

O apoio indireto às IPSS deve por isso ser consistente, sólido e adequado ao momento presente. Infelizmente temos protocolos diversos que estão ultrapassados, não só no aspeto organizativo/legal, mas sobretudo no apoio financeiro.

Podemos utilizar como exemplo uma empresa privada para percebemos aquilo de que falamos. Se um privado tem um custo real de um produto no valor de X, não o vai vender/ fornecer abaixo desse valor (acrescentando algum lucro ainda).

O que o Estado pede na maioria das vezes às IPSS, é que forneçam um serviço por um preço abaixo do seu custo real. Mesmo que acrescentemos a comparticipação dos utentes, esse custo somado ao do valor do protocolo, não cobre as despesas da Instituição.

Se ainda referirmos que o protocolo com o Estado apenas paga doze meses de comparticipação, mas as IPSS (como qualquer empresa) pagam de salários catorze meses, assim como de IRS e Segurança Social (e restantes contribuições/impostos), é claro para qualquer pessoa que se torna muito difícil esta gestão.

O que o Estado pede na maioria das vezes às IPSS, é que forneçam um serviço por um preço abaixo do seu custo real.

As nossas IPSS são de forma geral acarinhadas pelo meio onde se inserem, mas com a reflexão atrás feita, todos se debatem neste momento com um grave problema acrescido, a falta de voluntários para assumir os órgãos sociais das Instituições. Esta realidade é transversal de norte a sul do país, onde há grande dificuldade de renovação dos órgãos sociais.

As pessoas da comunidade têm grande dificuldade em conjugar o seu trabalho / carreira com a gestão de uma IPSS e, se acrescentarmos a isso as graves dificuldades financeiras que a maioria atravessa, não existem voluntários para esta tarefa tão exigente.

Não queremos ser pessimistas nem transmitir essa ideia, apenas refletir sobre um problema que hoje todas as IPSS se debatem. Sabemos, apesar do atrás referido, que há nas nossas comunidades pessoas que não deixam as IPSS se “afundarem” e que tudo fazem para as apoiar. Pena que esse número seja reduzido e muito centrado em pessoas reformadas ou próximo disso.

Temos necessidade de atrair para o terceiro setor gente jovem, com ideias e vontade de fazer o bem pela sua comunidade, mas para isso é necessário que este setor sofra algumas transformações já analisadas atrás.

atrair para o terceiro setor gente jovem, com ideias e vontade de fazer o bem pela sua comunidade

Uma gestão das IPSS em consonância com a realidade do século vinte e um, com protocolos de cooperação adequados ao real custo da valência, com salários dos trabalhadores das IPSS dignos e semelhantes ao setor público, seriam alguns dos passos fundamentais para a transformação das IPSS e sua revitalização.

Não creio que o atrás referido seja uma ideia impossível, acredito que será por esse caminho que temos todos de ir.

Que terceiro setor sairá desta pandemia? Acredito que um setor mais forte, mais unido. Já ficou demonstrado que, neste último ano, o nosso setor é resiliente e quando debaixo de “fogo”, une-se, entreajuda-se e responde com coragem, com solidariedade, sem deixar ninguém para trás. Esse é o terceiro setor que queremos, forte, unido, capaz de superar obstáculos, de criar respostas adequadas em cada momento perante as dificuldades sociais sentidas pela sua comunidade.

Que terceiro setor sairá desta pandemia? Acredito que um setor mais forte, mais unido.

Para que isso seja uma realidade o mais rápido possível, o Estado (os ministérios com intervenção neste setor) não pode deixar de assumir a sua quota-parte de responsabilidade neste processo. Seja com a revisão de protocolos, de alteração de tipos de funcionamentos, da criação de novas respostas inovadoras (que muitas vezes são bloqueadas e não incentivadas) e, acima de tudo, deve olhar este setor como um parceiro ativo e eficaz com o qual pode sempre contar, mas que também deve ser capaz de retribuir esse mesmo empenho e envolvimento.

Por Filomena Araújo, Presidente da Direção da Associação de Paralisia Cerebral de Viana do Castelo

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