Autor: Margarida Cruz
Reflexão sobre o 3º Sector
Terceiro sector, economia social, são tantas e tão diversas as realidades que se agregam. O mesmo acontece, aliás, nos outros dois sectores pois, por uma questão de arrumação e sistematização, há sempre a necessidade de colocar na mesma categoria realidades que estão algo distantes.
Sem preocupações de rigor científico, identifico nas entidades do terceiro sector traços hipoteticamente homogéneos: 1) não terem por objecto o lucro; 2) destinarem-se a colmatar problemas de uma sociedade que carece de soluções que lhe não são dadas, nem pelas empresas lucrativas, nem pelo Estado; 3) terem uma gestão de base democrática.
Não terem por objectivo o lucro
O facto de não terem como objectivo o lucro fez com que durante muito tempo, e quiçá ainda hoje, se misturasse o conceito com a não necessidade de rentabilidade, de produtividade e alegadamente com a não concorrência entre actores, mesmo que destinados a colmatar as mesmas falhas e vocacionadas para uma mesma população.
Para o bom funcionamento, a credibilidade e a relevância de um sector seria mesmo fundamental que os conceitos se não confundissem. Sim, as organizações do terceiro setor precisam de ser rentáveis. Sim, precisam de desenvolver com criatividade uma actividade onde os recursos disponíveis se multipliquem, para o benefício dos seus destinatários. Sim, as pessoas que trabalham no terceiro sector precisam de ser competentes, produtivas, e gizar planos relevantes, não para si próprios, mas que alimentem os que precisam em vez de se autoalimentarem.
as organizações do terceiro setor precisam de ser rentáveis
Não, as organizações do terceiro sector não se destinam dar trabalho a mão de obra não qualificada, que não é absorvida pelos restantes sectores ou de empregar jovens que foram admitidos em cursos sem empregabilidade e de qualidade por vezes duvidosa. Não, o terceiro sector não deve pagar abaixo dos demais, numa humildade envergonhada em que se justifica cada cêntimo de ordenado às entidades financiadoras e não cada actividade feita com criatividade, com gestão eficiente de recursos e com qualidade. O trabalho qualificado tem de ser remunerado. Quem trabalha no terceiro sector tem o mesmo direito de ter uma carreira que seja recompensadora a todos os níveis e não apenas moralmente. Chega de “sentimo-nos compensados com a gratidão dos nossos ...”!
Quem trabalha no terceiro sector tem o mesmo direito de ter uma carreira que seja recompensadora a todos os níveis e não apenas moralmente
Fala-se muito da necessidade de escrutínio, da transparência, da prestação de contas, tudo coisas que são normais para qualquer organização, seja de que sector for. Sim, esta não é uma necessidade particular de um sector, do terceiro, como se este fosse também terceiro em honestidade, em rigor e na aplicação adequada de recursos.
Não, o terceiro sector não é o parente pobre da ética organizacional. No terceiro sector existem organizações boas e más. No segundo sector existem organizações boas e más e, já agora, no primeiro também. Por isso, talvez já baste que cada organização do terceiro sector se sinta obrigada a dizer: eu apresento contas! Eu sou auditada! Eu sou honesta! Claro que somos. É isso que é suposto que todos sejam.
E o terceiro sector é concorrencial. Concorre pelos fundos, concorre pela actividade e não se justifica per se. Se não tiver meios para desenvolver a sua actividade e se não for selecionado pelo seu público, por de facto fazer um bom trabalho, um trabalho mais profissional que os demais da sua área, um trabalho que tem valor social, não tem razão de existir. Ser bonzinho é recompensador do ponto de vista moral, religioso, alimenta o ego, mas pode não ter mais valia social.
Ser bonzinho é recompensador do ponto de vista moral, religioso, alimenta o ego, mas pode não ter mais valia social.
E, já agora, não é apenas concorrencial dentro de casa, ou seja, dentro do próprio terceiro sector. É concorrencial com empresas que queiram satisfazer uma necessidade equivalente e com o próprio Estado. Por isso, deve poder crescer, sobreviver e sobrepor-se se for melhor que uma empresa, se for melhor que o Estado.
Agora que falei do Estado tenho de fazer uma referência especial a esta entidade, que vai mantendo com as organizações do terceiro sector uma relação ambígua de paternidade enjeitada que é tantas vezes prejudicial. Sim, existem funções do Estado. Às vezes o Estado sabe bem quais são. Às vezes o Estado define-as segundo as suas próprias conveniências. Às vezes o Estado deixa que, cada um que governa temporariamente, se aproprie da possibilidade de definir as funções do Estado, usando a definição segundo a sua própria ideologia e convicções.
o Estado limita-se a retribuir a prestação de serviços feita em seu nome. Isso não é caridade, é mercado.
O Estado acha que tem esse direito porque se entende como “a” entidade financiadora. O Estado não admite que quem financia são em última instância os contribuintes e que estes podem querer ser servidos pelo terceiro sector, mesmo em funções que são tradicionalmente do Estado. Nesses casos, o Estado limita-se a retribuir a prestação de serviços feita em seu nome. Isso não é caridade, é mercado. Não dá o direito a nenhum governante de tratar com menor respeito, ou com condescendência, qualquer entidade do terceiro sector. Quem paga não tem o direito de se substituir quando dá jeito, de alterar as regras do jogo a seu belo prazer. Quem paga tem o dever de estabelecer condições e regras genéricas mas exigentes e que visem o bem comum e fiscalizar a sua execução. E é tudo no que respeita ao Estado.
Colmatar problemas de uma sociedade que carece de soluções que lhe não são dadas, nem pelas empresas lucrativas, nem pelo Estado
Aqui entramos no que defini em segundo lugar como sendo uma característica do terceiro sector e que se prende com a resposta a um problema social. O que, como bem se depreende do que disse antes, já não dou como adquirido é que essa resposta não possa ser dada pelo sector lucrativo, ou pelo Estado. E, se assim é a resposta do terceiro sector tem de ser a melhor e a mais eficiente, pois se o não for, não tem qualquer razão de existir. Sim claro que pode ser complementar, mas se é complementar quer dizer que algo, uma franja da necessidade não estava de facto satisfeita e é sempre em sã concorrência que o deve ser.
a resposta do terceiro sector tem de ser a melhor e a mais eficiente, pois se o não for, não tem qualquer razão de existir.
Acredito que a maioria das organizações do terceiro sector conhece bem a sua população, o seu cliente, e que desse conhecimento deriva um potencial para satisfazer necessidades de forma mais eficiente. Porém, isso não é de todo um dado adquirido e temos, todos nós actores do sector, de provar que de facto somos melhores, mais competentes e que usamos menos recursos para satisfazer as mesmas necessidades. E, mais uma vez, só temos razão de existir enquanto o mercado assim o ditar.
Terem, supostamente, uma gestão de base democrática
Sobre a terceira parte que se prende com a gestão, entendo que existe a teoria e a prática. Na teoria, as organizações do terceiro sector autogovernam-se elegendo os seus corpos gerentes, seja de que forma for e com as diferenças que são estabelecidas para cada estatuto jurídico.
Na prática, a maioria das organizações tem dificuldades na articulação entre essa democraticidade e a gestão competente e profissional. Há um diálogo difícil e muitas vezes paralisante entre os “do coração “e os da “razão”.
a maioria das organizações tem dificuldades na articulação entre essa democraticidade e a gestão competente e profissional
É preciso estabelecer um equilíbrio difícil, e na maioria dos vezes não atingido, entre a necessidade de gestão competente, profissional, assídua e permanentemente sintonizada com o seu mercado e Corpos Gerentes voluntários, cheios de vontade de ajudar, mas com uma percepção difícil sobre a realidade e não apenas dos mecanismos de gestão mas até mesmo na dificuldade de aferição permanente de necessidades dos públicos alvo, de adequação, de criatividade para a reinvenção da solução social mais eficaz feita à medida mas sem perder a escala que permita a gestão.
A liderança de uma organização do terceiro sector é por isto e por tudo o que referi anteriormente um desafio continuado, um equilíbrio onde nem sempre os dois pés conseguem estar assentes no mesmo chão, onde inclusive por vezes se tem a sensação estranha de estar a pairar num vácuo.
Desafio permanente de compatibilizar luta por recursos escassos, dificuldades sociais gritantes, voluntarismo em vez de voluntariado, voluntariado sem voluntarismo, pseudo bem-intencionados e bem-intencionados, falta de profissionalismo e profissionais mal tratados, soluções sociais nunca “solucionantes” e um dia a dia cheio de …. concretizações.
Por Margarida Cruz – Diretora Geral da Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro