Meninos de Oiro
“Pai, pára de bater, por favor”
In Expresso, João Massano - Bastonário da Ordem dos Advogados
“O grito desesperado de uma criança de nove anos em Machico
expõe brutalmente a falência coletiva da sociedade portuguesa perante a
violência doméstica. É urgente criar uma rede nacional de apoio jurídico
preventivo às vítimas
Foram estas as palavras de uma criança de nove anos no
Machico, tentando proteger a mãe das agressões brutais do pai.
Mais do que um grito de desespero, este caso revela o
espelho implacável de uma falência coletiva que já não podemos ignorar. A
sociedade portuguesa precisa de enfrentar esta realidade com a coragem e a
verdade que a situação exige.
Se este caso ganhou dimensão mediática foi apenas porque
existem imagens - mas quantos outros dramas se perpetuam no silêncio dos nossos
lares?
Quantas vítimas permanecem invisíveis, sem câmaras que
documentem o seu sofrimento?
A verdadeira tragédia não está no que vemos, mas no que
permanece oculto.
Sem as câmaras de videovigilância, este caso teria seguido o
destino de tantos outros: o silêncio cúmplice da indiferença. Não haveria
revolta pública, o agressor permaneceria impune e a sociedade continuaria
confortavelmente instalada na ilusão de que "isso não acontece aqui"
ou "não é connosco".
A tecnologia forçou-nos a olhar para aquilo que preferíamos
ignorar. Revelou uma verdade incómoda: quantas agressões ficam por denunciar?
Quantos agressores circulam livremente?
Quantas vítimas sofrem no anonimato enquanto nós desviamos o
olhar?
O problema não é a ausência de câmaras - é a nossa
capacidade de fingir que não vemos.
A detenção do bombeiro de 35 anos só aconteceu quando a
vítima reuniu uma coragem dupla: a de denunciar e a de provar. Foi ao hospital
armada não apenas de ferimentos, mas de imagens que tornaram inegável o que
tantas vezes é negado.
Sem flagrante delito, foram as câmaras que fizeram justiça.
O choque das imagens conseguiu aquilo que milhares de palavras de vítimas não
conseguem: credibilidade imediata, ação policial e indignação pública.
Mas esta vitória é também uma derrota coletiva. Por cada
caso filmado existem dezenas de outros que acontecem na penumbra dos lares,
longe das câmaras, longe das testemunhas.
Aí, apenas o silêncio é testemunha - e o silêncio nunca
prestou declarações.
Pode alguém ser mau marido e bom pai?
Esta pergunta, aparentemente simples, esconde uma das mais
perigosas ilusões da nossa sociedade. Uma mentira que permitimos perpetuar para
não enfrentarmos uma verdade incómoda: não existem bons pais violentos.
Em Machico, o agressor alternava entre abraçar o filho e
agredir brutalmente a mãe - um teatro macabro que muitos ainda teimam em
aceitar como possível. Mas esta dualidade é uma ficção cruel.
Cada criança que assiste à violência contra a mãe está
também ela a ser agredida – psicologicamente e emocionalmente, de forma
irreversível. Está a aprender que o amor se exprime através do controlo, que a
violência é normal e que o silêncio é sobrevivência.
Os vizinhos, anteriormente, tinham visto marcas. Ela dizia
que tinha caído.
Quantas vezes ouvimos esta desculpa esfarrapada? Quantas
vezes fingimos acreditar para não termos de agir?
A questão não é se os vizinhos tinham obrigação de intervir
- é se temos a obrigação de não sermos cúmplices. Quando suspeitamos, quando
vemos, quando ouvimos gritos através das paredes, o nosso silêncio torna-se
também ele violência. O silêncio mata tanto quanto os punhos.
A violência no namoro atinge mais de 66% dos jovens
portugueses - uma epidemia silenciosa legitimada por uma cultura que romantiza
o controlo e confunde possessividade com paixão.
Este é o laboratório onde se formam os futuros agressores.
Cada "ela é minha" não contestado, cada "foi só um
empurrão" desculpado, cada "ele faz isso porque te ama" repetido
está a esculpir o próximo caso que chegará aos tribunais.
Quando não intervimos preventivamente, estamos a permitir
que padrões de violência se cristalizem, se transmitam de geração em geração
como uma herança maldita que ninguém quer reclamar, mas todos ajudam a
perpetuar.
A pergunta nunca foi se podemos fazer a diferença. A
pergunta é se conseguimos viver com o peso do silêncio que escolhemos.
Os números que nos deviam envergonhar
Das 30.461 queixas de violência domética registadas em 2023,
apenas 4.141 resultaram em condenações. Isto significa que apenas 13% dos casos
denunciados chegam a condenação - 87 em cada 100 agressores não enfrentam
consequências judiciais.
Em 2024, foram registadas 30.086 novas queixas - 82
denúncias por dia. Mas apenas 2.000 a 4.000 pessoas são condenadas anualmente.
Esta é a traição do sistema: pedimos às vítimas que quebrem
o silêncio, que confiem na justiça - e depois falhamos-lhes em 87% dos casos.
Uma rede nacional de esperança
É urgente criar uma rede nacional de apoio jurídico
preventivo às vítimas de violência doméstica, aproveitando as delegações da
Ordem dos Advogados e as instalações das autarquias, privilegiando a
proximidade às vítimas.
Esta proximidade, deve materializar-se numa resposta
coordenada entre a Ordem dos Advogados, autarquias e o Estado.
O apoio jurídico deve estar garantido, no mínimo, a partir
da apresentação da queixa, porque é nesse momento que as vítimas mais precisam
de orientação e proteção legal.
Esta rede deve funcionar no âmbito do apoio judiciário,
assegurando consultas jurídicas e acompanhamento processual desde o primeiro
momento.
Não podemos aceitar que as vítimas naveguem sozinhas pela
complexidade labiríntica do sistema judicial português enquanto enfrentam,
simultaneamente, a violência dos seus agressores.
A vulnerabilidade extrema destas pessoas exige uma resposta
jurídica imediata, competente e humanizada, que transforme o sistema judicial
num instrumento de proteção e não numa barreira adicional ao seu sofrimento.
O caso de Machico não pode ser mais um que cai no
esquecimento mediático. Este caso tem de ser o ponto de viragem para uma
resposta coordenada, eficaz e verdadeiramente protetora.
A Advocacia tem uma função social incontornável e devemos
estar onde as vítimas precisarem do nosso apoio. Esta rede nacional deve
espelhar o nosso compromisso de proximidade territorial e institucional,
garantindo que nenhuma vítima de violência doméstica fique isolada ou
desamparada.
Porque quando uma criança grita "Pai, pára de bater,
por favor", toda a sociedade deveria estar a ouvir - e a agir.
João Massano
Bastonário da Ordem dos Advogados”
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