DOUCES VIOLENCES: ensaio sobre um quotidiano profissional pouco debatido

Autor: Miguel Mata

DOUCES VIOLENCES: ensaio sobre um quotidiano profissional pouco debatido

O termo douces violences foi cunhado por Christine Schuhl, em 2003, no quadro da sua investigação sobre práticas profissionais em educação pré-escolar* . Rapidamente, a noção de douces violences adquiriu o estatuto de um verdadeiro conceito e foi generalizada a práticas profissionais que se desenrolam em diferentes contextos, tendo como denominadores comuns a existência de prestação de serviços e cuidados a pessoas com necessidades diversas, o enfoque nas relações interpessoais e a interdependência humana.

A designação douces violences constitui-se como um oximoro – termo que estabelece uma ligação entre duas palavras com significados contrários – e remete para as situações relacionais, de curta duração, que envolvem gestos, palavras, atitudes, comportamentos, olhares, considerados pouco adaptados e com impacto negativo na relação.

A nomeação deste fenómeno – que em língua portuguesa e numa tradução aproximada poderia ser designado de suaves violências – permite que os profissionais o possam encarar, discutir e ultrapassar. Quando refletimos sobre douces violences compreendemos que, na maioria das vezes, estes atos ou omissões relacionais não são necessariamente intencionais (conscientes) ou realizados com o intuito de prejudicar o outro, excluindo-se na análise destas práticas a hipótese da intencionalidade e da premeditação. Na origem destas situações encontramos, frequentemente, confusões entre os modelos familiares dos profissionais e os modelos institucionais: a ideia comum de fazer aos outros como fizeram comigo; porque considero que resultou na minha educação, deverá ser replicado na educação de outros. Esta generalização parece estar na génese de muitos dos equívocos que encontramos nas práticas profissionais. Não obstante, as douces violences não são sinónimo de maus-tratos, embora possam neles degenerar.

DOUCES VIOLENCES NO QUOTIDIANO

Para uma reflexão sobre esta temática, e para identificar e circunscrever o seu impacto, é importante centrarmo-nos sobre os momentos cruciais de um dia típico nas instituições prestadoras de serviços e cuidados a pessoas, como por exemplo: acolhimento, atividades desenvolvidas, refeições, cuidados de higiene, entre outros. De seguida, apresentamos alguns exemplos que têm sido recorrentemente identificados como douces violences em cada um destes momentos tipificados. Utilizaremos a designação clientes nestes exemplos (e daqui em diante no texto), remetendo para as pessoas que são os beneficiários dos serviços e cuidados prestados.

Acolhimento: falar sobre os clientes, na sua frente, sem os incluir nas conversas; conversas essencialmente negativas sobre os clientes; criticar abertamente familiares que acabam de deixar os clientes (comentários sobre a pontualidade, as roupas, os hábitos familiares); acolher os clientes mais ou menos amavelmente em função da relação que o profissional tem com os familiares; conversar ou discutir longamente com os familiares na frente dos clientes, deixando-os à espera; não dar as boas-vindas, nem sorrir; não respeitar o tempo de despedida entre os clientes e os seus familiares.

Atividades: forçar, obrigar ou pressionar os clientes a realizar uma atividade ou culpabilizar os clientes por recusar participar numa atividade; propor diversas atividades em simultâneo, mas não dar opção de escolha aos clientes; tecer comentários negativos sobre as competências dos clientes; não encorajar os clientes perante as suas dificuldades; interromper uma atividade para atender o telefone pessoal ou deixar a atividade sem prevenir os clientes; propor uma tarefa inapropriada para o nível de desenvolvimento ou motivação dos clientes; discutir com os colegas na frente dos clientes, deixando-os à espera.

Refeições: forçar os clientes a comer ou a provar; tirar a sobremesa aos clientes se estes não terminarem o que têm no prato ou outro tipo de chantagem; discutir com colegas enquanto está a servir ou a apoiar os clientes nas refeições; impedir os clientes de comerem sozinhos porque se poderão sujar; criticar a comida à frente dos clientes que serão forçados a comê-la; não permitir que os clientes terminem a sua refeição porque ultrapassaram o tempo previsto para esta rotina; ignorar os pedidos dos clientes durante a refeição.

Cuidados de Higiene: conversar com outros colegas durante um apoio à higiene pessoal dos clientes; fazer comentários sobre a higiene dos clientes, sobre a sua anatomia, sobre as suas doenças ou mazelas; não falar com os clientes durante o apoio na higiene; segurar ou prender os clientes, sem os avisar, durante o apoio na higiene; impedir os clientes de ir à casa-de-banho; deixar os clientes demasiado tempo na casa-de-banho; repreender os clientes pela necessidade sucessiva de apoio na sua higiene.

Os exemplos elencados não representam, obviamente, o quotidiano de todas organizações, nem esgotam as possibilidades de muitos outros episódios recorrentes ou extemporâneos de douces violences poderem eclodir na prestação de cuidados. Servem apenas para ilustrar como os pequenos atos ou omissões do dia-a-dia podem surgir, ainda que pareçam inofensivos, não intencionais e sem o propósito de prejudicar os clientes, sem responsabilização ou compreensão por parte dos profissionais.

ATOS QUOTIDIANOS QUE PODEM LEVAR A DOUCES VIOLENCES

Cientes de situações e exemplos de douces violences, podemos tentar escrutinar a origem destes episódios. A investigação sobre esta temática tem indiciado que subjacente às douces violences encontramos com frequência:

• Imposição sistemática de ritmos;

• Rituais, hábitos e rotinas inflexíveis;

• Ausência de representação dos clientes relativamente ao que vai acontecer;

• Conversas dos profissionais nas costas dos clientes;

• Atitudes, gestos e comportamentos inapropriados;

• Palavras dos profissionais que não respeitam os clientes;

• Expressão livre e imediata de ressentimentos;

• Desigualdade no tratamento e na qualidade da relação com os clientes;

• Julgamentos e etiquetagem.

Uma das questões fundamentais prende-se, obviamente, com as consequências que estes atos quotidianos podem provocar, nomeadamente: situações de insegurança afetiva; impacto negativo real nas pessoas; consequências no desenvolvimento, prestação de serviços desadequada, ineficaz, de parca qualidade e insatisfatória.

POSSÍVEIS ORIGENS DAS DOUCES VIOLENCES

Os trabalhos de investigação–ação têm-se debruçado também sobre as possíveis origens das douces violences, apontando para um conjunto de influências:

Humanas: características e personalidade dos profissionais, clientes e familiares dos clientes; as histórias pessoais; os percursos de vida profissional e pessoal.

Contextuais: organização interna das instituições; equipas maioritariamente femininas; locais de intervenção; número de clientes; idade dos clientes.

Institucionais/organizacionais: trabalho em equipa; formação e preparação das equipas de profissionais; políticas e modelo de governança; constrangimentos administrativos; utilização do tempo; rotinas e repetição de tarefas.

Societais: época histórica; história institucional; cultura; desenvolvimento técnico-científico; políticas socias; financiamento; legislação e direito; representações sociais.

A análise e tentativa de compreensão deste fenómeno tão comum, frequente e complexo tem sido organizada em torno de um conjunto de condições, nomeadamente:

Condições institucionais: organização; horários; número de clientes; recursos humanos e materiais; gestão do stress e das expetativas; organização dos espaços e das rotinas.

Trabalho em equipa: composição das equipas; interações entre profissionais (profissionalismo, confidências, amizades, afetividade); procura de reconhecimento e falta de confiança em si próprio; ressentimentos expressados sem distância crítica; não poder dizer ou não falar; ausência de discussão em grupo.

Abordagem pedagógica/intervenção: ritmo e escolha de atividades; atividades muito repetidas e perda de criatividade; dias demasiado estruturados; transições pouco organizadas; impedir escolhas livres e impor decisões; apego excessivo a um profissional; sistematização das atitudes, gestos e comportamentos;

Relação famílias-clientes-profissionais: transferência dos problemas e angústias; falar ou não falar; exigências e autoritarismo; normalização excessiva; julgamentos a priori e sem fundamento; peso do contexto; agressividade.

A reflexão sistemática de equipas de profissionais sobre esta temática tem apontado que, do ponto de vista dos clientes, as douces violences são um obstáculo para:

• Tomada de consciência da própria identidade;

• Consolidação do autoconceito, autoestima, autodeterminação e orgulho próprio;

• Descoberta do seu papel e do seu lugar no grupo;

• Capacidade de partilhar afetos, experiências e palavras;

• Sentimento de autonomia e liberdade;

• Sentimento de segurança e confiança nas relações.

Mas quais as ferramentas de intervenção disponíveis para os profissionais, munidos dos seus quadros teóricos, da sua intencionalidade educacional, e do seu desejo de cuidar de se relacionar? É fundamental como prática profissional a autoscopia e a possibilidade de pôr em causa e questionar o nosso posicionamento, atitudes, gestos e comportamentos. A identificação e análise das práticas profissionais é um processo dinâmico e contínuo no qual é essencial o confronto com a realidade do terreno. O bom senso não é suficiente e a mudança não ocorre por decreto ou imposição, sendo necessário atribuir particular atenção às estratégias defensivas: “foi sempre assim que se fez”; “tenho feito assim e tem resultado”. Apenas de um trabalho sistemático de discussão em equipa, de reflexão e de conjugação de opiniões, de construção de consensos, emerge a possibilidade do alinhamento de um conjunto de valores e de princípios de intervenção partilhados por todos os elementos de uma equipa que conduzirão a uma diminuição progressiva dos episódios de douces violences.

INTERVIR PARA COMBATER AS DOUCES VIOLENCES

A intervenção para a prevenção e remediação das douces violences incorpora um conjunto de pressupostos que tem como referências comuns o enfrentamento dos problemas, a vontade de mudança e a consciencialização de um percurso moroso que terá de ser trilhado. As fases desta caminhada incluem habitualmente:

1) Definir e construir um ponto de partida;

2) Nomear e reconhecer um responsável – pessoa que conduzirá o processo;

3) Conceber instrumentos que permitam um olhar crítico e analítico;

4) Atribuir um quadro de funcionamento e de referência;

5) Avaliar.

A observação, o registo de episódios, a discussão e a reflexão, são os instrumentos básicos disponíveis para as equipas que se embrenham neste processo, dependendo da capacidade de autoscopia, da crítica construtiva, do distanciamento analítico e da qualidade relacional. As observações a realizar em torno das douces violences devem basear-se numa grelha que permita destrinçar diferentes ângulos de análise que posteriormente serão debatidos em equipa. Podem ser tomados em consideração os momentos tipificados do quotidiano das organizações e/ou um episódio específico. Após identificação – por observação direta e participante, indireta, ou em retrospetiva – de um momento de douces violences deverão ser recuperadas informações relativas a variáveis como: ambiente e o contexto em que ocorreu; número de clientes e profissionais presentes; atitudes, gestos e comportamentos dos envolvidos; reações provocadas pelo momento nos profissionais e nos clientes; impacto do episódio para os clientes e profissionais.

Após este registo, seguir-se-á a análise dos episódios referenciados. Nesta análise devem ser incluídas questões orientadoras da discussão e reflexão como: a intervenção serviu os interesses dos clientes? Que significado teve o episódio para os clientes e para mim? Poderíamos ter agido de outra maneira?

Perguntas como estas poderão facilitar a tomada de consciência e permitir justificar se uma determinada situação pode ser encarada como douces violences. As perguntas orientadoras ajudam a recolocar os clientes no centro das preocupações, dando significado às práticas profissionais. A passagem para a ação inicia-se assim que os profissionais são capazes de redefinir as novas práticas, decidindo, em equipa, fazer de forma diferente. É necessário ousar fazer diferente! Um diário de bordo, ou outro tipo de registo escrito, deve acompanhar todo o processo de observação, discussão, análise e mudança de práticas. É o fio condutor do pensamento coletivo que se vai estabelecendo, dando coerência ao percurso e permitindo retomar análises de situações passadas sempre que se justifique.

Em paralelo com as observações, análise, e passagem à ação, é importante a construção de um quadro geral de referência, ao qual o profissional pode recorrer sempre que necessitar. Este referencial assenta sobre um conjunto de valores fundamentais e sobre as atitudes profissionais incontornáveis, devendo ser discutido e definido em equipa e posteriormente assumido por todos. Este documento deve ser dinâmico e revisitado com regularidade para que possa espelhar as ideias comungadas pela equipa em cada momento.

Por fim, a avaliação permite fazer um ponto de situação sobre as práticas profissionais: saber onde estamos, como aqui chegámos, o que queremos modificar, permitindo colocar boas perguntas. As emoções surgem muitas vezes nestes momentos avaliativos, sendo difícil destrinçar a crítica profissional da crítica pessoal, podendo acarretar insegurança, culpabilidade, dificuldade na análise e resistência à mudança. Um conjunto de perguntas pode ajudar a clarificar essas resistências ou hesitações: era possível fazer doutra maneira? É mais confortável para o profissional ou para os clientes? Quais foram as reações dos clientes? Quais são as situações que não evoluem? Porquê?

ALGUMAS CONSTATAÇÕES FINAIS SOBRE DOUCES VIOLENCES

No seio de uma equipa de profissionais, é necessária muita perseverança para continuar a sinalizar e analisar as douces violences para que a reflexão não se perca ou se desvie no quotidiano. É importante continuar a procurar um sentido para as práticas profissionais, colocando no centro o interesse dos clientes e as suas necessidades específicas.

Somos demasiadamente prisioneiros do tempo, do relógio e das rotinas. Quando as equipas se comprometem com a reflexão sobre douces violences, a noção de tempo surge com frequência. É preciso tempo... tempo para compreender, para aceitar os erros e as alterações a efetuar, para sentir e acreditar que é possível fazer diferente sem colocar em cheque todo um conjunto de experiências e práticas profissionais. A análise das douces violences reflete o momento presente: como acontecem, em que contexto, com que atores e, principalmente, com que consequências para os clientes. Apenas o tempo e a reflexão persistente permitirão uma aproximação entre discurso e práticas profissionais.

(*) Schuhl, C. (2003). Vivre en creche: Remédier aux douces violences. Lyon: Chronique Sociale.

Por Miguel Mata, Diretor do Centro de Investigação e Desenvolvimento da Associação QE- Uma nova linguagem para a Incapacidade

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