O caminho aberto e desafiante da Economia Social

Autor: Maria José Dinis da Fonseca

O caminho aberto e desafiante da Economia Social

O Setor da Economia Social

Quando, há cerca de 25 anos se instalou em mim a vontade, diria até necessidade, de criar uma resposta social, inovadora e dignificadora, para as pessoas com deficiência mental e multideficiência,  ainda não sentia nem vislumbrava a força e o valor acrescentado que as organizações sociais poderiam aportar aos sistemas sociopolítico e socioeconómico de um país. Hoje, é patente a sua imprescindibilidade e a sua afirmação como setor equilibrante e estruturante das sociedades em geral.

Este setor a que se consignou chamar Setor 3, o da economia social, tem, a partir de finais da década de 70, vindo a afirmar-se, progressivamente, como um pilar para um novo modelo de desenvolvimento económico e de inclusão social, sustentáveis.

Foi ténue, contudo, nos primeiros tempos, o seu avançar. Foi preciso ir ganhando consciência e conhecimento dos vários grupos sociais e indivíduos, com as várias necessidades, características e idiossincrasias, que têm direitos humanos e de cidadania como quaisquer outros. Apesar de nas duas últimas décadas, este setor ter desencadeado um crescente interesse na investigação e consequente documentação, ainda assim carece de um articulado esforço a nível europeu para a criação de metodologias e indicadores adequados à suas particularidades.

A economia social que prolifera em diversas formas: associativista, cooperativista, mutualista e outras que vão surgindo, traduz uma realidade multidimensional que cria um valor humano, social e económico difícil de mensurar, quantificar, já que a sua natureza é essencialmente qualitativa, mas, fundamental, imprescindível ao desenvolvimento dos outros setores.

É o setor da economia social emergente que, e cada vez mais, colmata lacunas sociais, humanas, ambientais…, inovando e coadjuvando com os outros sistemas; é o setor que, na medida em que os outros fragilizam, ele afirma-se e reinventa-se pertinentemente como salvaguarda do equilíbrio e da dignidade social e humana; é na ação que este setor leva a cabo que germinam as sementes dos direitos humanos e da inclusão e ainda da transformação e aproveitamento de potenciais escondidos ou negligenciados; é este setor que impregnado de solidariedade, filantropia e voluntariado, avança em linhas de frente, apaziguando, criando novos modelos e novas soluções para as novas problemáticas que emergem. É ainda este setor, ouso dizê-lo, um estandarte que vai à frente mostrando caminhos, mais visíveis em tempos de crise marcadas por transformações socioeconómicas.

É ainda este setor, ouso dizê-lo, um estandarte que vai à frente mostrando caminhos, mais visíveis em tempos de crise marcadas por transformações socioeconómicas.

O dinamismo que surge por via da ação das organizações do Terceiro Setor, quer a nível da significativa criação de emprego quer da ativação de mecanismos interativos em comunidades e regiões, leva a um desenvolvimento sustentável e a uma coesão social, desencadeadores de novos padrões societais que, por sua vez, levam a novos paradigmas susceptíveis de influenciar ou até modificar formas de governação. Apresenta-se este setor, que precisamos acarinhar e fortalecer, como um barómetro fundamental para o estado de direito social e para a consciencialização da necessidade de humanizar o capital.


Visão e missão amparadas de competências

Há, no entanto, no que concerne ao foro público legislativo, uma carência de revisão e modernização de algumas leis e normativos que permitam o fluir organizativo.  No foro mais interno, carecemos de uma revitalização de competências organizacionais, técnicas e operacionais, no que concerne a recursos humanos, para que possam ser melhor preparados e vocacionados para este setor, cada vez mais complexo, exigente e competitivo.

Urgem assim olhares atentos e profissionalizados para a governança e gestão estratégica destas organizações do Terceiro Setor que têm de garantir os mais variados recursos para a seu funcionamento sendo, os recursos humanos, o capital mais valioso. Impõem-se lideranças visionárias, flexíveis, criativas e independentes, suscetíveis de empreender sustentavelmente, requerendo e impulsionando as forças motrizes deste setor: a solidariedade, o humanismo e a responsabilidade social individual e coletiva.

Foram as motivações intrínsecas de muitos líderes que deram lugar à visão que norteia a maioria destas organizações, as quais impulsionam projetos inovadores e desencadeadores de equilíbrio e coesão sociais. Mas cada tempo é um tempo em constante mutação evolutiva; é o caminho, ou os caminhos percorridos - oscilantes, carentes, incertos e muitas vezes provocadores - que aportam importante  aprendizagem e resiliência a um líder de mente aberta, empenhado e com o foco certo. E porque o bom funcionamento e eficácia das organizações, com cariz humano e social, dependem da harmonização de vários desempenhos,  vontades e competências internas, deveriam estas organizações ter em conta o conceito do ponto e do círculo: o ponto (que é a essência, a visão norteadora e os princípios inerentes) deverá irradiar para o círculo mas, também o círculo com cada individualidade que o constitui deverá estar presente e refletir-se no ponto.

Karl König, pedagogo, fundador do Movimento Internacional Camphil expressou-se assim: "Uma organização social só é saudável quando no espelho da alma de cada um se forma a comunidade inteira e na comunidade se encontra presente a força da alma individual". É, a meu ver, nestas premissas que reside o maior ou menor sucesso na orientação eficaz de uma organização social.

Fui, e ainda sou, uma visionária. Percebi e aprendi, ao longo dos últimos 20 anos, que ser visionário é uma característica importante, diria até fundamental para um líder mas, só por si, não basta! A visão intuitiva deverá transformar-se em ação pragmática; a ação transporta objetivos, mas também obstáculos; os objetivos dão corpo a uma engrenagem organizacional que envolve exigências e competências multifacetadas, empenhamentos coordenados e execuções realistas que deverão ser impregnadas de um claro sentido de missão. Impõe-se por isso uma liderança e gestão, humanistas, conscienciosas, atentas, informadas e musculadas nas suas convicções e competências. Nem sempre isto acontece ou é possível, pelo menos na continuidade que seria desejável, o que decorre do próprio formato jurídico que é inerente à maioria das ONG, mas também à ausência de recursos económicos, tão parcos na maioria das organizações.

Impõe-se por isso uma liderança e gestão, humanistas, conscienciosas, atentas, informadas e musculadas nas suas convicções e competências.

A ação desenvolvida no setor social envolve muitos que, em cada organização, para cumprirem os objetivos, deverão estar alinhados com os princípios da missão e o espírito de serviço que inevitavelmente lhe é inerente. Imbuir princípios reguladores e espírito de missão é talvez a maior e mais difícil tarefa de um líder. Nem todos os que entram neste setor, como trabalhadores/colaboradores, vindos do normal mercado de trabalho, estão ou ficam, naturalmente, impregnados pelo desejável sentido missionário e com uma consciência coletiva e de responsabilidade individual. É significativa a percentagem de emprego que a área social cria mas, apesar do cada vez mais acentuado enfoque na educação e formação para este segmento, é ainda notório o esvaziamento de competências, quer humanas quer profissionais, acentuando-se esta situação em regiões de interioridade. A referida educação, a diversos níveis, e formação, constituem um desafio a ter em conta pelas entidades competentes.

Imbuir princípios reguladores e espírito de missão é talvez a maior e mais difícil tarefa de um líder.


Liderar em tempo de crise

Liderar é escutar, perceber o necessário, oportuno e saudável para a organização como  grupo  mas também como elo de ligação a todas as outras forças sociais exteriores; liderar é preparar caminhos e ter a capacidade de prevenir.

Vivendo nós agora e, apesar de tudo, num tempo com um razoável conforto, urge preparar para o que pode vir em desconforto, a todo o momento, como este que vivenciamos. É um tempo especial com uma crise inusitada e preocupante para todos os setores e sem premissas certas de superação nem na forma nem no tempo. É notória a nossa despreparação mas também notória é, como sempre, a capacidade atuante, improvisadora e criativa dos cidadãos, dos grupos sociais organizados, ou não, institucionalmente. É visível a força viva que reside em nós, no humano, na cidadania!  Impõe-se, cada vez mais, por um lado; uma ação concertada com todos os setores e o estabelecimento de parcerias com partilha de recursos e por outro a capacitação individual e organizacional. Perceber e medir o sentido da nossa ação e o seu impacto na sociedade, na economia, na política, na vida em geral, é agora um requisito fundamental nas organizações.

Mais do que nunca, neste tempo, podemos medir as forças e fraquezas do setor social, repensando-as e transformando-as nas mais valias que se impõem. Esta é uma oportunidade para todos os setores tecerem entre si uma colorida teia de suporte, de entreajuda e entendimento.

Esta é uma oportunidade para todos os setores tecerem entre si uma colorida teia de suporte, de entreajuda e entendimento.

O ser humano e a natureza que o integra e suporta são os ingredientes primordiais da nossa civilização. É preciso restaurar a politica da humanidade. Diz Edgar Morin no seu livo “La Voie”: "o desenvolvimento do desenvolvimento engendra e acentua a crise de desenvolvimento, conduzindo a humanidade para prováveis catástrofes em cadeia. O nosso espaço Terra é impulsionado por quatro motores descontrolados: a ciência, a técnica a economia e o lucro, cada um deles alimentados por uma sede insaciável: a sede do conhecimento (ciência); a sede de poder (técnica); a sede da possessão e da riqueza.  Os seus efeitos são ambivalentes…"  e diz ainda algo que sabemos mas convém recordar: "As reformas políticas, as reformas educativas, as reformas de vida, sozinhas, só por si, são e serão insuficientes e condenadas ao fracasso. Cada reforma só pode progredir se as outras progredirem. As vias reformadoras são correlativas, interativas e interdependentes". É fundamental a ação e o aporte do setor da economia social nas eminentes reformas, que se impõem. Não é fácil gerir, neste momento, alguns tipos de organizações sociais. Há riscos humanos, fragilidades económicas e temores indecisos. Isto implica, por parte de um líder, segurança mas também humildade, determinação e resiliência nos embates e na discordância dos que não estão alinhados ou preparados com e para a missão inerente. Isto implica, mais do que nunca, a essencial, mas também difícil, motivação contínua do corpo que constitui uma organização social; sejam líderes, colaboradores, utilizadores, stakeholders… porque, sem a sua satisfação e realização, individual e grupal, não há resposta social saudável e frutífera.


Liderança transformacional

Há vários autores com trabalhos de pesquisa, no campo teórico e empírico, sobre conceitos e padrões de liderança na economia social.  Conclui-se, e assim penso também, não ser desejável aplicar um só padrão ou estilo, até pelas próprias características mutáveis e evolutivas das organizações sociais. Se houver uma estrutura de conhecimentos fundamentais e orientadores, impregnados da motivação certa por parte de um líder, também a liderança se vai construindo e adaptando às circunstâncias, sendo espontaneamente aceite e compreendida, pelos recursos humanos que fazem parte de uma organização, sendo que, assim, também eles, conjuntamente, crescem, aprendem e constroem.

Liderar é um ato de aprendizagem constante que se faz sempre com os outros. - Muito aprendi com os outros! com enfoque especial nos utilizadores do serviço estabelecido pela organização, chamados utentes (na nossa organização são, os companheiros, porque com eles vivemos, com eles criamos e com eles trabalhamos, ensinando e aprendendo mutuamente). E porque a alma humana é um cofre de mistérios e surpresas, então, só o verdadeiro encontro de ser a ser nos poderá levar à resposta que o outro anseia ou precisa. Precisamos de repensar a política da humanidade.

Liderar é um ato de aprendizagem constante que se faz sempre com os outros.

Não sendo uma gestora de formação, mas sobretudo uma pedagoga e socio terapeuta, fui exercendo intuitivamente as funções de gestão e orientação, amparada por constante aprendizagem formativa. Pratiquei, espontaneamente, vários estilos de liderança, conforme as circunstâncias e, às vezes, oscilando entre duas ou três abordagens dependendo dos casos, das pessoas ou situações em causa. Errei também, naturalmente, e aprendi mais, porque assumi e refleti nos erros abrindo espaços outros e com os outros, em companheirismo e consonância. Continuei, buscando sempre a transparência e, continuamos, perseguindo a caminhada estimulante, mas tantas vezes dificultosa, que um dia encetámos.

Concluo que é a liderança de estilo transformacional, impregnada de inteligência emocional, que convém à maioria das organizações de cariz social e humano. É aquela que leva à expansão e à descoberta de potencialidades individuais; que promove o crescimento e realização humana e profissional desenvolvendo uma cultura organizacional mais consistente e partilhada.

Concluo que é a liderança de estilo transformacional, impregnada de inteligência emocional, que convém à maioria das organizações de cariz social e humano.


O futuro próximo

Criar e gerir soluções assertivas, respeitosas e inovadoras, neste tempo desafiante e incerto, não é uma tarefa linear. Na situação pandémica que nos invadiu, não estávamos preparados, ninguém nos ensinou como enfrentar situações análogas. Parece-me, que alem dos conhecimentos a ter em conta; é a sensatez informada, a resiliência entusiasta, a capacidade criativa e a utilização de recursos endógenos, que constituem as melhores ferramentas para fazer face a uma crise. É preciso nessas alturas, encontrar o verdadeiro Sentido do que nos rodeia; vislumbrá-lo e integrá-lo na ação a planear e a desenvolver. Sabemos que, esta situação concreta, afetará todos os setores, mas será sempre o Terceiro Setor, o da economia social, por consequência, o mais atingido. Os “casos sociais” aumentarão, a necessidade de respostas abrangentes, consistentes e sustentáveis vão impor-se. Continuar a reinventar e fortalecer o Terceiro Setor, será preciso. Muitos de nós, ainda com características subsídio-dependentes, teremos de gerar sustentabilidade, vias alternativas para garantir recursos e novos meios de subsistência. Deveremos persistir num empreendedorismo inovador amparado pelas medidas e apoios ao estímulo social por parte de muitas instituições e empresas da sociedade civil cada vez mais atentas e cooperantes. Falhar no setor social é falhar na dignidade humana e, nenhum sistema económico, público ou de mercado, poderá singrar se não tiver em conta este setor ou seja, a dignidade do ser humano e a coesão social, em primeira linha. Julgo serem esses os augúrios que se fazem sentir na Europa e no mundo deste tempo. Estaremos nós à altura, temos vontades concertadas, para responder aos desafios deste tempo!?...


Por Maria José Dinis da Fonseca

Presidente de Direcção da ASTA-Associação Sócio Terapêutica de Almeida

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