A Sustentabilidade começa em casa

Autor: Helena Gata

A Sustentabilidade começa em casa

O tema da sustentabilidade tem dominado a agenda política de forma assídua e mais marcante nos últimos 20 anos. Sem surpresa, trata-se de um conceito dinâmico, que tem variado e evoluído à medida que procura fazer uma leitura holística e pragmática da realidade.

O conceito começou a ser delineado na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano em 1972 na Suécia. Em 1987, o Relatório O Nosso Futuro Comum ou Relatório de Brundtland como ficou conhecido, propunha que o uso sustentável dos recursos naturais deveria "suprir as necessidades da geração presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir as suas" (WCED,1987:39). Assente em três pilares: Ambiente, Economia e Equidade, o conceito tornou-se um marco histórico que influenciou as reflexões que se seguiram. Os/as autores/as argumentaram que a sustentabilidade só poderia ser alcançada através da proteção do meio ambiente, preservação do crescimento e desenvolvimento económico e promoção da equidade, sem que haja prevalência de um pilar em detrimento de outro. Sabemos hoje, que passados 35 anos, apesar de algumas melhorias, a preocupação com o crescimento económico foi sempre predominante. As dimensões social e ambiental foram muitas vezes negligenciadas. Atualmente, o conceito de sustentabilidade, que reconhece a preeminência de um equilíbrio entre os três pilares - ambiental, social e económico, deixou de ser um conceito cujo interesse é meramente académico e passou a fazer parte do léxico diário dos cidadãos/ãs. A principal razão prende-se com o facto de o impacto negativo da ausência de medidas de promoção da sustentabilidade estar presente no nosso quotidiano e evidenciar fragilidades de cada pilar, que na prática se traduziram nas últimas décadas num aumento da desigualdade, pobreza relacionada com a desertificação e fenómenos climáticos extremos, destruição da biodiversidade, aumento de epidemias e dos movimentos migratórios, entre outros.

passados 35 anos, apesar de algumas melhorias, a preocupação com o crescimento económico foi sempre predominante

Procurando responder à questão¹ que a Sector 3 me colocou, irei destacar a dimensão social, enfatizando o papel da gestão de pessoas e dos modelos de organização do trabalho nas organizações da Economia Social (ES) na promoção da sustentabilidade.

Algumas organizações da ES são exemplares na sua forma de atuação e gestão de recursos, mas há muitas em que persistem lacunas graves a nível da gestão de pessoas e transparência dos processos, entrando por vezes em contradição com a missão e as causas que procuram defender. Como pode uma organização da ES atuar sem ter por base uma política de RH que garanta condições laborais que promovam a qualidade de vida dos seus trabalhadores/as? Como pode uma organização da ES ser sustentável se não promove a paridade salarial e equidade nos processos internos? E ainda, se não age de forma transparente nos processos de recrutamento, de avaliação e na divulgação dos seus resultados anuais?

Fazendo uma analogia à conhecida frase de Dickens “a caridade começa em casa”, poder-se-á dizer que sustentabilidade começa em casa. O pilar social é, também ele, constituído por relações laborais, motivações, direitos e deveres laborais, sentido de missão, avaliações com intuito de melhorar, laços de solidariedade entre as pessoas e entidades, entre outros.

As pessoas são, para a grande maioria das organizações que atuam na resolução dos problemas sociais da sociedade portuguesa, o único “património” e principal ativo. É importante salientar que segundo o INE, quase 90% do VAB da Economia Social em 2016 foi destinado a remunerações, enquanto a nível nacional, o VAB representava cerca de 50%. Neste sentido, é surpreendente, e até mesmo irracional, constatar que há um desinvestimento na formação, capacitação e gestão de talento dos/as trabalhadores/as do setor social. Não é evidentemente um problema setorial e específico da ES, mas sim um problema nacional. O Inquérito Europeu sobre as Condições de Trabalho 2015 (Eurofound) revela que apenas 14% dos/as trabalhadores/as portugueses/as afirmava ter recebido formação nos últimos 12 meses. Portugal surge na primeira posição, com o pior desempenho nesta área quando comparado com os restantes países da EU.

há um desinvestimento na formação, capacitação e gestão de talento dos/as trabalhadores/as do setor social

Os dados apresentados pelo Inquérito ao Sector da Economia Social em 2018 do INE são bastante esclarecedores. No que diz respeito às medidas de conciliação da vida profissional e pessoal, 42,3% das entidades da ES não implementam nenhuma medida, 25,8% dão aos seus trabalhadores/as a possibilidade de dedicar parte da jornada laboral à resolução de assuntos pessoais. No que se refere à flexibilidade de horários, o sector social apresenta melhores resultados do que média nacional (48,3% na ES e 39% a nível nacional referem flexibilidade de Horário, INE e Eurofound). No que concerne às condições laborais, há mais trabalhadores/as com contratos sem termo na ES (81%) do que a média nacional (78%), mas há muitos mais trabalhadores/as por conta de outrem a receberem o salário mínimo nacional no setor da ES (32,4%) do que a nível nacional (22,1%) (INE e Pordata, dados de 2018), o que denuncia precariedade e ausência de trabalho digno, pelo menos a nível da remuneração. Quem conhece o setor da ES, sabe que os salários praticados são em média baixos, sobretudo nas associações e misericórdias. Como pode o setor empregar tantos trabalhadores/as pobres e lutar contra o fenómeno da pobreza?

Um dos principais desafios está relacionado com a igualdade entre homens e mulheres. Os homens ocupam maioritariamente lugares de topo na direção das organizações da ES (78,1% Masculino e 21,9% Feminino), embora se verifique uma inversão quando analisamos a distribuição das pessoas ao serviço com funções de dirigente por sexo (37,6% Masculino e 62,4% Feminino). Na prática, persiste uma diferença salarial bruta entre homens e mulheres nas entidades da ES, bastante superior à média nacional. De acordo com o estudo Gender Pay Gap, o diferencial remuneratório em 2018 entre homens e mulheres foi de 17,7% (trabalhadores/as a tempo inteiro) e de 20,65% (total de trabalhadores/as). A diferença salarial bruta nas entidades da ES foi de 30,1% em 2018 (INE). O que não deixa de ser surpreendente, uma vez que 71,4% afirmam ter adotado políticas de igualdade/paridade salarial entre homens e mulheres. Fica a dúvida, se de facto foram implementadas ou se está em causa a eficiência destas medidas.

Na prática, persiste uma diferença salarial bruta entre homens e mulheres nas entidades da ES

Embora não haja estudos sobre os modelos de organização do trabalho e condições de trabalho das entidades da ES, advinha-se que a realidade não seja muito diferente do panorama nacional. Por experiência própria a nível da consultoria realizada no setor, há uma fraca inspiração no modelo de organização do trabalho antropocêntrico. Prevalece uma baixa autonomia no trabalho, desvalorização do trabalho em equipa de forma independente, baixa participação nos processos de decisão por parte dos/as trabalhadores/as, fraco investimento na formação dos/as trabalhadores/as e prevalência do modelo de governação monista. Apenas 15,1% das direções das entidades da ES permitem que a sua equipa identifique o problema, defina opções e tome decisões dentro dos limites pré-estabelecidos (INE, 2018).

No que diz respeito, à transparência e responsabilidade social apenas 25,8% divulgam o seu Relatório e Contas e 14,9% elaboram um relatório de Responsabilidade Social. 47,9% das organizações da ES não realizam nenhuma iniciativa de responsabilidade social, apenas 17,9% desenvolvem iniciativas com vista a sustentabilidade ambiental, 12,5% fazem uma auscultação dos/as trabalhadores/as e apenas 17,4% promovem iniciativas culturais, desportivas e recreativas no âmbito da sua política de responsabilidade social (INE, 2018).

apenas 25,8% divulgam o seu Relatório e Contas

Pedindo desde já desculpa aos leitores/as pela insistência e densidade dos dados apresentados, fica, no entanto, comprovado que há um longo caminho a fazer para que haja uma articulação entre a sustentabilidade social, ambiental e económica. É indiscutível o contributo das organizações da ES na promoção da sustentabilidade social, mas é crucial que haja um olhar atento e autocrítico sobre os procedimentos internos das instituições. A preocupação com a sustentabilidade social é tão importante quanto os outros pilares da sustentabilidade e deve começar em “casa”. Só assim poderá ser alcançado um equilíbrio virtuoso entre os três pilares.

¹ Porque é que o pilar social é tão importante quanto os outros dois pilares da Sustentabilidade – ambiental e económico? Como se devem articular na organização?

Helena Gata


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