Autor: Pedro Aragão Morais
VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
INTRODUÇÃO
A violência doméstica funciona
como um sistema circular – o chamado ciclo da violência doméstica – que
apresenta, regra geral, três fases: (1) Fase de aumento da tensão; (2) Fase do
ataque violento; (3) Fase do apaziguamento ou da lua-de-mel. A violência
doméstica é muitas vezes mantida em segredo durante anos. Alguns estudos
apontam para que apenas 40 a 50% dos crimes chegam ao conhecimento das
autoridades. Os sucessivos Planos Nacionais contra a Violência Doméstica têm
procurado soluções para proteger as vítimas, condenar e recuperar os
agressores, conhecer e prevenir o fenómeno, qualificar profissionais e dotar o
país de estruturas de apoio e de atendimento. Alguns indicadores do Relatório
Anual 2015 da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV): 23.326 crimes;
12.837 processos de apoio; 83% das vítimas do sexo feminino; 40,7 anos de idade
média; 38% casados; 49% com filhos; 25% com ensino superior.
ÂMBITO
O conceito de violência doméstica
com que a APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vitima trabalha é bastante
amplo:
Qualquer conduta ou omissão de
natureza criminal, reiterada e/ou intensa ou não, que inflija sofrimentos
físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto, a
qualquer pessoa que resida habitualmente no mesmo espaço doméstico ou que, não
residindo, seja cônjuge ou ex-cônjuge, companheiro(a) ou excompanheiro(a),
namorado(a) ou ex-namorado(a), ou progenitor de descendente comum, ou esteja,
ou tivesse estado, em situação análoga; ou que seja ascendente ou descendente,
por consanguinidade, adopção ou afinidade.
Esta definição implica a
referência a vários crimes, nomeadamente: o de violência doméstica, o de
ameaça, o de coação, o de difamação, o de injúria; o de subtracção de menor, o
de violação de obrigação de alimentos, o de violação, o de abuso sexual, o de
homicídio; e outros.
A violência doméstica funciona
como um sistema circular – o chamado ciclo
da violência doméstica – que apresenta, regra geral, três fases:
1. Fase
de aumento da tensão: as tensões quotidianas acumuladas pelo(a) agressor(a) que
este(a) não sabe/consegue resolver, criam um ambiente de perigo iminente para a
vítima que é, muitas vezes, culpabilizada por tais tensões. Sob qualquer
pretexto o(a) agressor(a) direcciona todas as suas tensões sobre a vítima. E os
pretextos, que podem ser muito simples, são usualmente situações do quotidiano,
como exemplo, acusar a vítima de não ter cozinhado ou cozinhado com sal a mais,
de ter chegado tarde a casa ou a um encontro, de ter amantes, etc.
2. Fase
do ataque violento: o(a) agressor(a) maltrata, física e psicologicamente a
vítima (homem ou mulher), que procura defenderse, esperando que o(a)
agressor(a) pare e não avance com mais violência. Este ataque pode ser de
grande intensidade, podendo a vítima por vezes ficar em estado bastante grave,
necessitando de tratamento médico, ao qual o(a) agressor(a) nem sempre lhe dá
acesso imediato.
3. Fase
do apaziguamento ou da lua-de-mel: o(a) agressor(a), depois da tensão ter sido
direccionada sobre a vítima, sob a forma de violência, manifesta-lhe
arrependimento e promete que não vai voltar a ser violento(a). Pode invocar
motivos para que a vítima desculpabilize o comportamento violento, como por
exemplo, ter corrido mal o dia, ter-se embriagado ou consumido drogas; pode
ainda invocar o comportamento da vítima como motivo para o seu descontrolo.
Para reforçar o seu pedido de desculpas pode tratá-la(o) com delicadeza e
tentar seduzi-la(o), fazendo-a(o) acreditar que, de facto, foi essa a última
vez que ele(a) se descontrolou.
O ciclo da violência doméstica
caracteriza-se pela sua continuidade no tempo, isto é, pela sua repetição
sucessiva ao longo de meses ou anos, podendo ser cada vez menores as fases da
tensão e de apaziguamento e cada vez maior e mais intensa a fase do ataque
violento. Em situações limite, o culminar destes episódios poderá ser o
homicídio.
Diferentes estudos e estatísticas
apontam para que a violência doméstica ocorra mais frequentemente nos estratos
socioeconómicos mais desfavorecidos – o que pode ser um efeito de factores
culturais-educacionais mais fortemente legitimadores da violência presentes
nestes estratos socioculturais ou, simplesmente, um efeito da maior
visibilidade que vítimas e agressores destes estratos têm, dado que, por falta
de alternativas económicas e sociais, tenderão a recorrer mais às instâncias
públicas de apoio a vítimas, às instâncias oficiais de controlo social e a
escapar menos à vigilância das instâncias de regulação judicial e apoio social.
Outro aspeto a tomar em
consideração é que a maior parte dos abusadores não apresenta psicopatologia relevante nem problemas
de alcoolismo ou de toxicodependência. A ideia da psicopatologia como causa do
comportamento violento está generalizada entre cidadãos e profissionais de
diferentes áreas. No entanto, estudos internacionais demonstram que apenas 5 a
10% dos perpetradores de violência doméstica terão algum tipo de
psicopatologia/perturbação mental associada. Uma coisa é afirmar que o abuso de
álcool ou outras drogas surge associado a situações de violência doméstica,
outra é tomá-los como a causa dessa violência, o que é incorrecto.
A maior parte dos estudos está de
acordo no que diz respeito ao reconhecimento de que as causas de violência são multifactoriais e de que a
concomitância/cruzamento de alguns factores pode tornar mais provável a
ocorrência de situações de abuso. Assim, existe relativo consenso sobre a
necessidade de intervir em múltiplos níveis para se atingir a máxima eficácia
na intervenção sobre este fenómeno, combinando a ponderação dos factores de
risco individuais com factores culturais e transgeracionais.
A violência doméstica é, por
definição, uma situação de violência continuada, muitas vezes mantida em segredo durante anos. Alguns
estudos apontam para que apenas 40 a 50% dos crimes cheguem ao conhecimento das
autoridades. De entre as múltiplas dificuldades que se enfrenta quando se
procura solucionar este problema, merecem destaque aspectos como o estigma
social associado à violência no casal, o medo de retaliação pelo agressor,
quando há uma denúncia, entre outras preocupações com a segurança das vítimas.
Actualmente o Código Penal já
consagra expressamente (art. 152º) que existe crime de violência doméstica quando existam “maus tratos físicos e
psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas
sexuais (...) a pessoa de outro ou do mesmo sexo” com quem o agressor “mantenha
ou tenha mantido uma relacção análoga à dos cônjuges, ainda que sem habitação”.
Para além deste artigo específico, a lei também criminaliza, por exemplo, as
ameaças, a coação, a difamação, as injúrias, a subtracção de menor, a violação
de obrigação de alimentos, a violação, o abuso sexual e o homicídio ou
tentativa de homicídio.
Em 2013, Portugal ratificou a
Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra
as Mulheres e a Violência Doméstica – mais conhecida por Convenção de Istambul.
Esta Convenção assenta no reconhecimento de que “a violência contra as mulheres
é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens que levou à dominação e discriminação das mulheres pelos
homens, privando assim as mulheres do seu pleno progresso”. Afirma ainda que “a
natureza estrutural da violência contra as mulheres é baseada no género, e que
a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais através dos
quais as mulheres são mantidas numa posição de subordinação em relação aos
homens”.
Algumas das consequências
traumáticas mais comuns em vítimas de violência: danos físicos, corporais e
cerebrais, por vezes irreversíveis; alterações dos padrões de sono e
perturbações alimentares; alterações da imagem corporal e disfunções sexuais;
distúrbios cognitivos e de memória; distúrbios de ansiedade, hipervigilância,
medos, fobias, ataques de pânico; sentimentos de medo, vergonha e culpa; níveis
reduzidos de autoestima e um autoconceito negativo; 66 VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
Referencial Técnico COMBATE À POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL vulnerabilidade ou
dependência emocional, passividade; isolamento social resultante de sentimentos
de vergonha, auto-culpabilização, desvalorização pessoal, falta de confiança;
comportamentos depressivos.
Muitas vezes, as vítimas
desconhecem quer a dimensão criminal dos actos violentos exercidos contra si
quer os seus direitos. Não se identificam, em muitos casos, como vítimas e não
procuram a ajuda a que têm direito. Há, no entanto, momentos em que, por efeito
de uma escalada da violência sofrida, um ataque mais violento aos filhos,
efeito de “saturação” ao longo dos anos de vitimação, efeito de informação
obtida através dos meios de comunicação social, conversas no trabalho, com os
vizinhos e outros, acabam por ultrapassar as resistências e obstáculos e tomar
a decisão de romper com a situação violenta. A vítima de violência pode
queixar-se dos crimes que o agressor tiver praticado contra si ou contra os
seus bens. A apresentação de uma queixa-crime inicia um processo-crime. Pode
apresentar a queixa-crime junto da Guarda Nacional Republicana (GNR), da
Polícia de Segurança Pública (PSP) ou da Polícia Judiciária (PJ), que
comunicarão ao Ministério Público o(s) crime(s) praticado(s). A vítima pode,
ainda apresentar a queixa-crime
directamente ao Ministério Público, junto do Tribunal da área onde ocorreram os
factos. Provas dessa violência (bilhetes com ameaças, bens destruídos, exames
médicos que comprovem lesões sofridas, …), cópias de anteriores denúncias e
testemunhas dos actos praticados pelo agressor são um importante contributo e
devem ser preservadas e apresentadas às instâncias judiciais.
A maioria das vítimas que procura
ajuda está em risco/perigo (p.e., risco de violência física grave, risco de
sequestro, risco de homicídio conjugal). É necessário garantir condições de
segurança à vítima e filhos. Por isso, é fundamental proceder à avaliação do risco. Para uma mais
adequada tomada de decisão sobre o apoio a fornecer às vítimas é também
fundamental proceder a uma avaliação do impacto/danos (físicos, psicológicos,
sexuais, sociais, etc.) causados pela violência doméstica continuada, dos
recursos e das capacidades que a vítima tem para tomar decisões e concretizar
autonomamente projectos alternativos à relacção abusiva. Esta avaliação,
sobretudo nas suas componentes físicas e psicológicas, deverá ser feita por profissionais especializados,
respectivamente das áreas médica e psicológica. Quando a vítima não deseja ou
não pode regressar a casa, e não existe suporte familiar ou de amigos, o
profissional poderá sugerir um alojamento temporário ou um Centro de Acolhimento. Existindo filhos, deve haver o cuidado de
não os separar da mãe. Deve garantirse o apoio às despesas de alimentação,
despesas de saúde, cuidado aos filhos, transporte e escola, se necessário. Se a
vítima pretender a separação e/ou avançar com uma queixa-crime, deve ser
apoiada e informada dos procedimentos legais e das suas implicações, estar
preparada para lidar com as diferentes etapas, instâncias e situações
envolvidas no processo judicial e ter consciência de que estes processos
abarcam desde as questões relacionadas com os filhos menores e a família ao
processo-crime contra o agressor. Quer a vítima decida afastar-se quer decida
permanecer com o cônjuge maltratante, muito particularmente nesta última situação,
o profissional deverá ajudar a vítima a elaborar um plano de segurança pessoal, isto é, a formular um conjunto de
estratégias para aumentar o seu grau de segurança nas diferentes situações de
risco ou de violência por que pode passar. Assim, é importante analisar com ela
as situações mais frequentes de violência e os acontecimentos que mais vezes as
precipitam, os contextos em que ocorrem e as alternativas de fuga que tem face
a cada uma.
As instituições de atendimento e apoio a vítimas de violência/crime são
uma das mais importantes conquistas dos anos 70-80, na sequência do esforço dos
movimentos feministas, das lutas pelos Direitos e pela Igualdade das Mulheres,
da crescente consciencialização social para o problema e do próprio
desenvolvimento do conhecimento científico sobre o fenómeno e consequente
desenvolvimento de estratégias de intervenção específicas. Nestas instituições
é fundamental o trabalho em equipa multidisciplinar, de forma a dar-se resposta
às necessidades da vítima aos mais variados níveis: legal/judicial, social,
médico, psicológico. É crucial, no entanto, promover uma efectiva intervenção
em rede, com partilha de informação, para que a vítima não seja obrigada a
repetir narrativas e procedimentos, isto é, para que se evite a vitimização
secundária (intra e inter-) institucional.
Encontrar um equilíbrio (sempre precário) entre a protecção da vítima e a
garantia da sua segurança, entre o sigilo profissional e as obrigações
legais-profissionais, entre o dever de servir a vítima e a instituição em que
trabalha ou, de forma mais geral, a sociedade em que se insere, nem sempre é
fácil. 67 VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Referencial Técnico COMBATE À POBREZA E EXCLUSÃO
SOCIAL Os três tipos fundamentais de intervenção junto de vítimas de violência
doméstica são:
1.
A intervenção
em crise
Um estado de crise emerge quando a situação vivenciada pela pessoa parece pôr em causa a sua integridade física e/ou psicológica e ultrapassa as capacidades que tem no momento para a superar ou para lidar com as circunstâncias adversas. A intervenção em crise é direccionada para a resolução imediata do problema, focalizando-se nos acontecimentos ou situações precipitantes e procurando potenciar as capacidades da vítima para se confrontar e lidar com o problema e suas consequências. Esta ajuda deve ser orientada para o empowerment da vítima, procurando otimizar os seus recursos e capacidades, validando os seus direitos e apoiando as suas decisões. A vítima que procura ajuda junto das instituições de atendimento/apoio pode desejar romper com a situação violenta e avançar com uma queixacrime, mas também pode fazê-lo com o objectivo de ver alterado o comportamento violento do agressor, de parar com a violência sem abandonar o companheiro, ou até de receber apoio emocional e psicológico, sem que, pelo menos na fase inicial do processo, revele qualquer outro pedido/motivo. O profissional de atendimento/ajuda tem o dever de a apoiar, seja qual for a sua decisão. No caso de a vítima avançar com uma queixa-crime, deve o profissional alertá-la para o perigo de represálias ou para um eventual aumento da violência por parte do agressor. Pode também fornecerlhe informação sobre serviços/programas de intervenção em agressores, ajudando-a a ponderar se e como deve transmitir essa informação ao companheiro. Quando a vítima não deseja ou não pode regressar a casa, e não existe suporte familiar ou de amigos, o profissional poderá sugerir um alojamento temporário ou um Centro de Acolhimento/uma Casa Abrigo. Se a vítima pretender a separação e/ou avançar com uma queixa-crime, deve ser apoiada e informada dos procedimentos legais e das suas implicações. Se a vítima necessitar de cuidados médicos deve ser encaminhada para os serviços de saúde competentes e os técnicos devem funcionar como elos de ligação, facilitando o contacto e a deslocação às instituições. Se a vítima desejar regressar a sua casa, convém avaliar com ela os riscos envolvidos nesse regresso ao domicílio e, se necessário, estabelecer um plano de segurança.
É fundamental que o técnico de apoio à vítima a auxilie na avaliação do risco, através de um levantamento e caracterização da situação, estudo da história de vitimação e da evolução das formas e gravidade da violência ao longo do tempo, exame dos processos e dinâmicas envolvidos, das características da vítima, do agressor, das dinâmicas abusivas e dos contextos de ocorrência, existência de filhos menores e/ou outros familiares. Devido ao facto de serem expostas a agressões repetidas ou a ameaças constantes e da sua integridade física e psicológica estar constantemente ameaçada, as vítimas desenvolvem níveis muito elevados de tolerância à violência e à dor, pelo que algumas vítimas, ao fim de algum tempo, não se apercebem das manifestações mais quotidianas de violência ou das lesões menos graves por elas produzidas. A situação de violência resulta de e assenta num complexo conjunto de dinâmicas e processos que sustentam o controlo do agressor sobre a vítima e a manutenção desta na relacção abusiva. O objectivo central é sempre o mesmo: deter poder e controlo sobre a vítima, implementando o agressor todo um conjunto de comportamentos interrelacionados para garantir o seu exercício. A “Roda do Poder” é um instrumento através do qual a vítima percebe como funcionam as estratégias de poder e controlo do agressor, a forma como o abuso físico constitui uma espécie de “cinta” que enquadra, sustenta e reforça cada um dos restantes tipos de abusos/violência. Por outro lado, a “Roda da Igualdade” permite trabalhar com a vítima papéis e representações sociais, perspectivar novas visões sobre o relacionamento homem-mulher e ajudar a vítima a projectar outras posições existenciais e relacionais para o futuro.
A vítima deve, sempre que se
revelar necessário e produtivo para a evolução da vítima, ser acompanhada por
um psicoterapeuta (psicólogo ou psiquiatra). Este apoio revela-se fundamental
para que a vítima consolide as transformações pessoais entretanto iniciadas e
possa concretizar plenamente os seus novos projectos de vida. Mesmo que o
período de crise tenha sido já ultrapassado e a vítima se tenha autonomizado e
reconquistado poder sobre si e sobre a sua vida, as consequências traumáticas
da violência continuada, emocionais e psicológicas, tendem a emergir de forma
mais visível ao fim de algum tempo e a superação da experiência traumática só
será possível com um apoio continuado e regular. Não só as dimensões
cognitivas, emocionais, relacionais, sexuais, têm de ser trabalhadas com a
vítima, como, estando em curso processos judiciais, é importante garantir apoio
à vítima, nas fases mais complexas e perturbadoras deste percurso. O apoio
continuado pode ser desenvolvido ao nível individual, de grupo ou comunitário,
seguindo diferentes modelos e estratégias de intervenção. A intervenção em
situações de violência doméstica e de género assenta numa visão holística da
situação em que o/a utente se encontra, considerando a singularidade de cada
pessoa e a sua trajectória de vida, as circunstâncias presentes, as
expetactivas de futuro. Assim sendo, é exigida uma intervenção em rede e
multidisciplinar para a qual concorrem diferentes serviços, da saúde à
educação, passando pela segurança social, pelas forças de segurança e justiça,
entre outras. Esta intervenção multidisciplinar quer-se coordenada e articulada
entre serviços e profissionais.
RESPOSTAS
Em 1999, através do I Plano Nacional contra a Violência
Doméstica, pela primeira vez o Estado Português assumia preocupação sobre a
problemática da violência doméstica, uma vez que se percecionava que a
violência exercida contra as mulheres ocorria sobretudo no espaço privado da
casa, especialmente ao nível das relações conjugais, imperando a necessidade de
dar maior visibilidade a esses actos de violência, na maioria dos casos
ocultados na esfera privada do espaço doméstico ou das relações de intimidade.
Desde então, e através dos sucessivos Planos Nacionais contra a Violência
Doméstica, a abordagem ao fenómeno da violência doméstica tem acompanhado, a
nível nacional, a evolução das directrizes europeias e internacionais nesta
matéria, assentando numa política concertada e estruturada com o objectivo de
proteger as vítimas, condenar e recuperar os(as) agressores(as), conhecer e
prevenir o fenómeno, qualificar profissionais e dotar o País de estruturas de
apoio e de atendimento, convocando o poder local e as organizações da sociedade
civil para uma união de esforços e estratégias que erradiquem a violência
doméstica e a violência de género no país.
O V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014 -2017 (PNPCVDG) estrutura -se em cinco áreas estratégicas (num total de 55 medidas):
Actuar na prevenção significa combater a violência na sua raiz e em toda a dimensão das suas causas, procurando desenvolver estratégias conducentes a uma sociedade assente na igualdade e livre de discriminação e violência. Algumas das medidas previstas: (a) Realizar campanhas nacionais contra todas as formas de violência; (b) Realizar seminários/conferências sobre a temática da violência doméstica e de género; (c) Realizar acções de sensibilização e de informação particularmente dirigidas à comunidade educativa, mas também dirigidas a pessoas idosas, imigrantes e outros grupos de risco; (d) Distinguir e divulgar boas práticas empresariais no combate à violência doméstica e de género.
Vertente do plano que visa a capacitação e autonomização das vítimas, bem como melhorar o seu acesso aos serviços, nomeadamente, aconselhamento jurídico, apoio psicológico, apoio social e económico, alojamento, formação e apoio na procura de emprego. Tal implica a realização de trabalho em rede entre as várias entidades, públicas e privadas. Compreende também o alargamento das respostas de acolhimento de emergência específico para situações de violência doméstica. Abrange ainda a protecção por teleassistência, bem como a implementação de metodologias de avaliação de risco, medidas estas fundamentais para promover a segurança das vítimas.
Sendo a problemática da violência doméstica de extrema complexidade e implicando muitas vezes uma proximidade de risco entre vítimas directas/indirectas e agressores(as), a intervenção junto de agressores(as) torna-se uma prioridade, atendendo à necessidade de proteger as vítimas e prevenir a reincidência. Por outro lado, intervir junto de agressores(as) é um forte contributo para a interrupção de ciclos de reprodução de comportamentos violentos. Algumas medidas previstas: (a) Consolidar o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) desenvolvido em meio comunitário; (b) Consolidar em todo o território nacional a implementação do sistema de vigilância electrónica a agressores(as) de violência doméstica; (c) Consolidar o processo de avaliação de problemáticas específicas em jovens.
Uma melhor capacitação de profissionais nesta área também contribui para a diminuição da vitimação secundária e da revitimação. Algumas medidas previstas: (a) Qualificar o dispositivo operacional da PSP e da GNR; (b) Ampliar as acções de formação junto de profissionais que intervêm, directa ou indirectamente, na área da violência doméstica e de género (saúde, segurança social, educação, justiça, outros); (c) Alargar a formação que habilite para a função de Técnico(a) de Apoio à Vítima a todo o território nacional.
Tendo em conta o percurso já
efectuado no conhecimento e investigação sobre a prevenção e o combate à
violência doméstica, e à luz das implicações da Convenção de Istambul, as medidas
incluídas nesta área estratégica procuram aprofundar o conhecimento sobre as
várias formas de violência de género abrangidas pela referida Convenção.
À Comissão para a Cidadania e a
Igualdade de Género (CIG) compete a coordenação e monitorização do PNPCVDG.
As entidades formais e
directamente compreendidas ou implicadas no âmbito dos serviços de apoio à
vítima são as seguintes:
· Estruturas
de atendimento: são constituídas por uma ou mais equipas técnicas de
entidades públicas dependentes da administração central ou local, de entidades
privadas que com aquelas tenham celebrado protocolos de cooperação e de outras
organizações de apoio à vítima que assegurem, de forma integrada, com carácter
de continuidade, o atendimento, o apoio e o reencaminhamento personalizado de
vítimas, tendo em vista a sua protecção;
· Respostas de Acolhimento de Emergência: visam o acolhimento urgente de vítimas acompanhadas ou não de filhos/as menores, pelo período necessário à avaliação da sua situação, assegurando a protecção da sua integridade física e psicológica;
· Casas de
Abrigo: são as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a
vítimas, acompanhadas ou não de filhos/as menores.
Para além do Número Verde de
atendimento gratuito e do Serviço de Teleassistência, entre outras medidas, o
CIG também disponibiliza, para consulta online, um Guia de Recurso na Área da Violência Doméstica, o qual está
estruturado segundo as seguintes categorias de entidades:
· Estruturas de Apoio à Vítima;
· Forças de Segurança;
· Estabelecimentos Prisionais;
· Instâncias da Justiça;
· Centros de Protecção de Crianças e Jovens;
· Serviços de Atendimento locais da Segurança Social.
A Teleassistência a vítimas de violência doméstica tem como objectivo fundamental aumentar a protecção e segurança da vítima, garantindo, 24 horas por dia e de forma gratuita, uma resposta adequada quer em situações de emergência, quer em situações de crise. Para além do atendimento telefónico, o sistema tecnológico de suporte da teleassistência possibilita a localização georreferenciada da vítima, fulcral em situações de crise/emergência. A teleassistência utiliza equipamentos de comunicação da rede voz móvel que estão conectados directamente ao Centro de Atendimento, que integra técnicos/ as especificamente preparados/ as para dar uma resposta adequada a cada situação. Os objectivos da teleassistência são os seguintes:
· Atenuar níveis de ansiedade, aumentando e reforçando o sentimento de protecção e de segurança das vítimas, proporcionando apoio e garantindo a comunicação 24 horas por dia com o Centro de Atendimento;
· Aumentar a autoestima e a qualidade de vida das vítimas, estimulando a criação e/ou reforço de uma rede social de apoio;
· Minimizar a situação de vulnerabilidade em que as vítimas se encontram, contribuindo para o aumento da sua autonomia e a sua (re) inserção na sociedade.
Os Grupos de Ajuda Mútua (GAM’s) são estruturas relactivamente pequenas (6 a 15 elementos) constituídas por pessoas que partilham um problema ou situação e se reúnem para a resolução de uma dificuldade ou satisfação de uma necessidade. Os GAM’s fornecem apoio, encorajamento, informação e estratégias de coping. O que os distingue de outros grupos é o facto de serem liderados pelos seus próprios membros, terem como pressuposto básico a autonomia face a qualquer sistema interventor exterior. Estes grupos são orientados por um conjunto de princípios e valores que assentam no respeito pela diversidade das pessoas, das capacidades individuais e na identificação de problemas comuns e criação de recursos adequados. Um dos objectivos-chave dos grupos é a partilha de sentimentos, ideias, opiniões e experiências.
A Associação Portuguesa de Apoio à
Vítima (APAV), criada em 1990, é uma IPSS que promove e contribui para a
informação, protecção e apoio aos cidadãos vítimas de violência e crimes.
Objectivos da APAV:
· Promover a protecção e o apoio a vítimas de
infracções penais, em particular às mais carenciadas, designadamente através da
informação, do atendimento personalizado e encaminhamento, do apoio moral,
social, jurídico, psicológico e económico;
· Colaborar com as competentes entidades da administração
da justiça, polícias, de segurança social, da saúde, bem como as autarquias
locais;
· Formação e gestão de redes de cooperadores
voluntários e do mecenato social, bem como da mediação vítima-infractor e
outras práticas de justiça restaurativa;
· Fomentar e patrocinar a realização de
investigação e estudos sobre os problemas da vítima;
· Promover e participar em programas, projectos e
acções de informação e sensibilização da opinião pública.
Com sede em Lisboa e mediante
contratoprograma celebrado com o Estado, a APAV gere uma rede nacional de
Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV) que visa satisfazer as necessidades locais
das vítimas de crime e suas famílias, desenvolvendo relações de proximidade e
procurando garantir a máxima optimização de 71 VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Referencial
Técnico COMBATE À POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL recursos disponíveis. Através
destes GAV, a APAV assume um papel fundamental na colaboração institucional com
diversas entidades – autarquias, polícias e tribunais. Esta rede é actualmente
composta por 15 GAV’s dispersos por diferentes regiões do país.
Em síntese, a APAV promove três tipos de apoio:
· Apoio Social - Prestado por técnicos (as) de Serviço Social, educadores sociais e outros profissionais de Trabalho Social devidamente qualificados. O apoio social prestado pela APAV tem, entre outros, os seguintes objectivos: (1) fazer o diagnóstico das necessidades sociais da vítima de crime e da sua família, nomeadamente ao nível da habitação, educação emprego e formação profissional; (2) informar a vítima acerca dos vários recursos sociais existentes; (3) reflectir e explorar com a vítima os recursos sociais mais adequados; (4) auxiliar a vítima no contacto, presencial ou não, com outros serviços e instituições (locais, regionais ou nacionais), para optimizar os recursos mais adequados para o processo de apoio; (5) encaminhar a vítima para outros serviços e instituições (locais, regionais ou nacionais), favorecendo o contacto com os respectivos profissionais; acompanhando a vítima presencialmente; e elaborando os relatórios de processo de apoio à vítima necessários.
A União de Mulheres Alternativa e Resposta
(UMAR), constituída em 1976, é uma ONG empenhada em despertar a consciência
feminista na sociedade portuguesa. Com 5 núcleos regionais (Porto; Braga;
Setúbal; Madeira; Açores) a UMAR tem Acordos de Cooperação com Segurança Social
para as respostas sociais “Casas de Abrigo” e “Centros de Atendimento” e ainda
parcerias com várias Câmaras Municipais.
Nos distritos onde a APAV e a
UMAR não operam, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)
procura assegurar a existência de Núcleos
de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica, seja com recursos
próprios seja mediante celebração de acordos de cooperação com entidades locais
vocacionadas para intervirem nesta área do apoio à vítima.
De referir também a EAPN – Rede
Europeia Anti Pobreza, que embora não intervenha de uma forma directa
com serviços de apoio à vítima de violência doméstica, colabora amplamente com
as entidades a operar no terreno, mediante acções de sensibilização e formação,
estudos e relatórios.
BOAS PRÁTICAS
Projecto IMPACT
Projecto desenvolvido pela APAV,
ao abrigo do Programa Cidadania Activa, que consiste num sistema de avaliação
organizacional que permite chegar a conclusões sobre a atenção externa dada às
vítimas de crime, designadamente no que diz respeito à alocação de recursos.
Alguns dos principais indicadores: (A)Cada processo de apoio desenvolvido na
APAV tem o custo médio de 77,16€; (B) Os custos suportados pelo Estado com as vítimas
de crime apoiadas pela APAV, é apenas de 39,59€ por cada vítima apoiada; (C) O
valor pago pela Segurança Social por cada processo de
atendimento/acompanhamento RSI (Rendimento Social de Inserção) ascende aos 90€.
Projecto “Para uma vida nova…”
A Associação para o
Desenvolvimento de Figueira foi a promotora deste Projecto de iniciativa
comunitária EQUAL, no âmbito da (re) inserção socioprofissional das vítimas de
violência doméstica. O objectivo foi criar um guia “Resposta Integrada na
Violência Doméstica”, que contribuísse para potenciar os recursos disponíveis,
através da implementação de uma metodologia de resposta integrada na violência
doméstica. O Projecto contou com uma rede de parceiros públicos e privados,
envolvendo 14 Municípios que participaram na conceção dessa guia, que o
testaram e utilizaram com ferramenta de trabalho. Este Projecto parte da
premissa de que todo o acompanhamento da pessoa que foi vítima de violência
doméstica deve ter por base a conceção do denominado “Projecto de Vida”, sendo
este delineado a partir do diagnóstico efectuado pelo(a) técnico(a) de
referência.
Projecto “Carry On”
O desenvolvimento de metodologias
que contribuam para a recuperação de vítimas de violência doméstica é o
principal objectivo deste Projecto. Promoção da sua inclusão social, a
capacitação individual, a autoestima e o seu bem-estar físico e psicológico,
bem como o desenvolvimento de estilos de vida sustentáveis. O Projecto, que
decorre no norte do país, visa desenvolver actividades baseadas nos serviços
dos ecossistemas, recorrendo às competências de um dos parceiros nesta
vertente. A participação de entidades de diferentes sectores sociais irá
potenciar uma maior eficácia no envolvimento de toda a sociedade na defesa dos
direitos humanos. Este Projecto, promovido pela Sociedade Portuguesa de Vida
Selvagem, mereceu o apoio do Programa Cidadania Activa, edição 2014, no
montante de 93.500 euros.
Parentalidades
Projecto promovido pela
Associação Fernão Mendes Pinto, também apoiado pelo Programa Cidadania Activa,
no montante de 85.600 euros, assenta em abordagens inovadoras para a construção
de relacionamentos não-violentos com base na igualdade de direitos entre
géneros e para a prevenção da exposição das crianças à violência doméstica. A
promoção de novos modelos de organização familiar ajuda a prevenir a violência
de género e interrompe a perpetuação de modelos familiares disfuncionais. A
construção de novos papéis para homens e mulheres é necessária para o
desenvolvimento de relações baseadas na igualdade de direitos e deveres, onde
as competências pessoais, sociais e parentais são igualmente valorizadas e
assumidas entre géneros. O Projecto compreende várias iniciativas: uma campanha
de informação e debate público sobre questões de relações de género; cursos de
intervenção para a coparentalidade e desenvolvimento de competências parentais
positivas; uma iniciactiva para crianças expostas a violência doméstica, com o
objectivo de mitigar os seus efeitos negativos; e formação para profissionais
que prestam serviços nessas áreas.
INDICADORES
Alguns resultados de um inquérito
realizado pela Agência dos
Direitos Fundamentais da União Europeia em 2014, a 42 mil mulheres de 28
Estados-Membros da EU:
· Desde os 15 anos de idade, uma em cada 10
mulheres foi vítima de algum tipo de violência sexual.
· Cerca de 27% das mulheres sofreram algum tipo de
violência física perpetrado por um adulto durante a infância (antes dos 15 anos
de idade).
· Apenas 14% das mulheres denunciaram à polícia o
incidente de violência.
· Um terço das mulheres consultou um médico, um
centro de saúde ou um hospital devido ao incidente mais grave de violência
sexual por parte de um parceiro.
· Só 6% das vítimas contactaram um abrigo para
mulheres e 4% uma organização de apoio à vítima.
· Cerca de uma em cada quatro vítimas de agressão
sexual, tanto por um parceiro como por outra pessoa, não contacta a polícia nem
qualquer outra organização, após o incidente de violência mais grave que
sofreu, por se sentir envergonhada e constrangida.
· 25% das mulheres inquiridas foram rebaixadas ou
humilhadas em privado por um parceiro, 14% foram ameaçadas de agressão física
pelo parceiro e 5% foram proibidas de sair de casa.
· De entre as mulheres que tinham uma relação no
momento do inquérito, 7% sofreram quatro ou mais formas diferentes de violência
psicológica.
· Os resultados do inquérito revelam que, desde os
15 anos de idade, uma em cada cinco mulheres foi vítima de alguma forma de
perseguição.
· Entre 74% das mulheres já foram vítimas de
assédio sexual no seu meio profissional
Alguns indicadores do Relatório
Anual 2015 da APAV:
· 34.327 atendimentos
· 12. 837
processos de apoio
· 9. 612 vítimas apoiadas
· 23.326 crimes (7.507 casos de maus tratos
psíquicos e 5.167 maus tratos físicos)
· 83% das vítimas do sexo feminino
· 40,7 anos de idade média
· 38%
casados
· 49% com
filhos
· 25% com
ensino superior
· 39%
empregados
LEGISLAÇÃO
· DL nº 61/91, de 13 de agosto - Protecção às mulheres vítimas de violência
· Lei nº 104/2009, de 14 de setembro - Indemnização às vítimas de violência doméstica
· Resolução do Conselho de Ministros nº 102/2013, de 31 de dezembro - V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014-2017
· Decreto-Lei nº 2001/2007 de 24 maio -Isenção de taxas moderadoras para vítimas de violência doméstica
· Lei nº 112/2009, de 16 de setembro - Regime jurídico de prevenção da violência doméstica, protecção e assistência às suas vítimas.