Autor: Maria Antónia F. P. Varela Machado
SER MÃE DIRIGENTE DA IPSS CEDEMA
Aos 22 anos, fui mãe do meu primeiro filho que nasceu com Síndrome de Down ou Trissomia 21, despertando-me para a problemática da deficiência mental, uma realidade que eu desconhecia, levando-me a descobrir uma área vazia de compreensão, conhecimento e quase totalmente árida de atenção, apoios e inclusão.
Até então, era raro verem-se pessoas com deficiência mental a circular nas ruas nomeadamente as portadoras de Síndrome de Down, que eram escondidas não só pelo estigma que advinha da idade média, em que um filho assim era a prova de um pecado e motivo de vergonha, mas também porque não havia respostas sociais para os enquadrar. Este comportamento era transversal a todas as classes sociais, sobretudo nas classes altas que os enviavam para as propriedades da família onde eram criados pelos caseiros enquanto que nas classes menos favorecidas, ficavam fechados em casa ou nos currais enquanto a restante família ia trabalhar para o campo.
Carentes de cuidados específicos e medicação adequada, a maioria morria ainda jovem, antes dos 30 anos, sobretudo de doenças respiratórias, cardíacas entre outras. Felizmente os avanços da medicina, como os antibióticos, o aumento da literacia, a televisão e a comunicação social, operaram uma mudança de mentalidades que fizeram a diferença para o panorama atual.
Acompanhar e educar o meu filho foi um caminho bastante penoso, cheio de descobertas empíricas de novas abordagens, estímulos cognitivos e sensoriais, mas gratificante pela forma como ele aproveitava os nossos esforços e em retorno nos ensinava a ser pacientes, apesar da nossa exigência, vencendo metas e dificuldades com imensa resiliência e sempre com uma enorme alegria de viver. Pelo reconhecimento e reforço positivo que recebia e total inclusão em todos os locais e meios que frequentávamos, sem qualquer diferenciação dos irmãos, adquiriu imensas competências apesar dos prognósticos médicos iniciais o que me levou a concluir que o apoio constante com amor, dedicação e ajuda profissional, vale a pena, pese a exaustão, o cansaço e o esforço permanente.
gratificante pela forma como ele aproveitava os nossos esforços e em retorno nos ensinava a ser pacientes
Esta experiência pessoal fez com que tenha adquirido a certeza de que, o que fiz e aprendi, era o desejável para todos os outros como ele. Com os estímulos apropriados, amor e persistência muito se consegue.
Com o aumento da longevidade das pessoas com deficiência e a necessidade de ambos os membros do casal trabalharem fora de casa, nasceram algumas associações de pais como a APPACDM que iniciaram valências desde a Creche, à Formação, passando pelo Ensino Especial e Centros de Atividades Ocupacionais, que o meu filho frequentou.
Na época de 1980, assumi um lugar na Direção da APPACDM, tendo também o pelouro da Creche que além de ser inclusiva, praticava técnicas novas de estimulação precoce, com ótimos resultados.
Com o passar do tempo e o envelhecimento desta população, surgiu a enorme preocupação dos pais em relação aos cuidados e proteção dos filhos após o seu desaparecimento ou incapacidade. Desta angústia, nasceram associações de pais como a CEDEMA, com o objetivo da criação de lares, onde os seus filhos, ficariam bem entregues a profissionais credenciados, com conforto e dignidade, questão esta que anteriormente com a sua morte prematura não se equacionava.
Se os antibióticos fizeram milagres as pessoas que hoje os reabilitam, ensinam e cuidam, também operam maravilhas.
Foi por todas essas pessoas, que assumi a enorme responsabilidade de dirigir a CEDEMA e com ela tantas vidas… porque dar sentido à vida a quem a natureza falhou e às pessoas que para isso contribuem, requer espirito de Missão, Resiliência, Amor, Solidariedade e sobretudo a capacidade de se colocar sempre no lugar do outro, seja utente, família ou trabalhador, sem perder a própria identidade; capacidade de ouvir sem julgar, de respeitar e dar a mão ao outro quando necessário, de saber tomar a decisão adequada a cada situação e agir com determinação; ter a abertura de espírito para acompanhar a evolução tecnológica e científica, atualizando e adaptando constantemente conceitos e práticas, arriscando sempre para melhorar e crescer, frequentemente sem grandes recursos financeiros, reinventarmo-nos em cada dia, encontrando formas de concretização de objetivos com recurso à criatividade, à solidariedade e muitas vezes, à comunidade.
dar sentido à vida a quem a natureza falhou
Confesso que não é fácil despirmo-nos da nossa própria individualidade, do nosso pensamento e juízo de valores para entendermos ou aceitarmos as razões de tantas vidas diferentes, de cada família com problemas tão distintos, de situações tão diversas e tão prementes e manter intacta a nossa essência.
Mas apesar das dificuldades, quero que a angústia dos outros pais seja minimizada pelas condições que asseguramos para os seus filhos, sabendo que encontram nos Lares e nos Centros de Atividades Ocupacionais da CEDEMA, o bem estar e o prolongamento da família, porque dói ver pais agarrados à vida desesperadamente só pelo medo de deixarem os filhos para trás, sem garantias de boas condições, porque nem sempre os outros familiares têm a sensibilidade e a capacidade financeira para os assumir, dando-lhes ou providenciando os cuidados necessários.
Quero que as pessoas com deficiência mental tenham uma vida digna e feliz com amor, reabilitação, alojamento, ocupação e socialização num contexto de oportunidades de inclusão e reconhecimento dos seus plenos direitos como seres humanos e cidadãos, porque dói saber que saem centenas de jovens da escolaridade obrigatória, com diversas deficiências e patologias, sem resposta para as suas necessidades especiais e de ocupação, que ficam em casa a regredir e a serem marginalizados por não corresponderem aos padrões da “normalidade”.
A solução poderia passar pelas Associações vocacionadas para esta problemática, mas infelizmente estas são insuficientes para a crescente procura e embora hoje o panorama tenha mudado, para além da conquista na longevidade, na aceitação, na capacitação e na inclusão social, ainda há muito caminho a percorrer.
A minha esperança é que num futuro próximo a humanidade se una para que a deficiência seja cada vez mais um problema de todos, que os constrangimentos atuais por falta de respostas adequadas, sejam colmatados e que cada individuo no mundo tenha acesso a todos os cuidados que necessita e merece.
A minha esperança é que num futuro próximo a humanidade se una para que a deficiência seja cada vez mais um problema de todos
E, já agora a título de curiosidade em ilustração de como algumas pessoas pensavam e agiam em pleno século XX.
Em Novembro de 1966 no mesmo ano em que o meu filho nasceu, nos EUA, nascia Daniel Miller filho do célebre dramaturgo Arthur Miller e da fotógrafa Inge Morah. Com apenas uma semana de vida, foi abandonado pelo pai numa instituição (a qual nos anos 80 foi processada por sobrelotação e falta de condições). Só quase 40 anos depois, seis semanas antes de morrer com 89 anos, em 2005, é que o pai se arrependeu e o quis conhecer, incluindo-o no testamento.
Aos 17 anos de idade, Daniel participou nos Special Olympics, em esqui, ciclismo e marcha. Hoje, vive feliz com um casal de idosos.
Na mesma época, um casal português refugiado em França (para fugir á Guerra Colonial), também tiveram um filho com Sindrom de Down e multideficiência que internaram numa instituição e nunca mais o viram. Muitos anos depois a instituição informou da sua morte.
Uma jovem mãe quando soube que a filha recém-nascida era “mongoloide, como na altura eram tratados”, caiu numa depressão tão profunda que se recusou a alimentá-la e cuidá-la. A frágil criança faleceu poucos dias depois de inanição.
Por Maria Antónia F. P. Varela Machado, Presidente da CEDEMA - Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Mentais Adultos