Sozinhos não somos nada

Autor: Maria do Carmo Campelo Ribeiro

Sozinhos não somos nada


Algo nos inquieta quando olhamos para a beleza do mundo e reconhecemos a nossa pequenez. Nasce uma vontade enorme de querer entender o propósito e o sentido da missão a que somos chamados. Encontrar o nosso propósito, dispormo-nos a olhar melhor, com a consciência da nossa pequenez, olhar de novo, com os olhos do coração. Começamos a entender que podemos fazer a diferença, diante de tantas pessoas para cuidar, que precisam de ajuda, de esperança, reconhecer-lhes dignidade, dar-lhes ânimo, no sentido de lhes dar vida. Num mundo onde materialmente tudo está ao nosso alcance, onde temos informação e conhecimento de tudo o que se passa à nossa volta, reconhecemos que as pessoas não são mais felizes, todos somos tentados a querer sempre mais e mais…. Podemos chegar à conclusão que não é o “ter” que nos sacia, mas sim o “dar” que nos realiza e dá alegria. E isso, todos podemos fazer. Servir sem medida como Nosso Senhor nos ensinou.


Fig 1 – Voluntárias ao encontro da população da Madragoa (anos 60)

É neste caminho interior que se cruza a minha história com a da Assistência. Há 46 anos entrei na Assistência Paroquial de Santos para escrever à máquina as fichas dos doentes que frequentavam o Posto Médico. Cada ficha que passava por mim era uma história de alguém que trazia consigo uma mágoa ou uma dor. Nesta casa conheci também um grupo de pessoas de coração grande, capazes de ir ao encontro daquela comunidade, para diminuir o seu sofrimento, desde médicos, enfermeiras, voluntários, que se uniam partilhando este caminho com uma presença firme e vivendo com eles as dificuldades e os problemas, dando sentido às suas vidas. Na Assistência, assisti a uma realidade - “o amor ao próximo”. Esta foi a minha escola.


Fig 2 - Voluntárias (anos 60)

Foi o início de uma caminhada, à qual chamo Missão - olhar por aqueles que precisam de auxílio, dar de comer, confortar os que sofrem de solidão, curar feridas, assistir aos acamados, visitar e tratar os doentes. Foi um desafio que vivi com uma enorme gratidão, foi também uma aprendizagem para a minha vida, sentir a responsabilidade de servir e descobrir a alegria que sentia em cada um destes encontros.


Fig 3 – Voluntárias- distribuição de leite (anos 60)

Olhar por aqueles que não sabem tomar conta de si próprios é um dever de todos nós. Não precisamos de ser muito bons para o fazer, precisamos sim de abrir o coração e procurar entender a necessidade do outro. Com caridade, ajudá-lo a olhar às suas dificuldades, e confrontá-lo com o facto de não estar sozinho. Acompanhar e aliviar o sofrimento dos outros com entrega e generosidade, abriu caminho à transformação de muitas vidas. A gratuidade destes gestos leva-nos a agradecer tudo o que acabamos por receber, foi também um ensinamento que tirei deste meu percurso, onde tivemos muitos casos de sucesso, mas também alguns insucessos.


Fig 4 – Consulta médica (anos 50)

Envolver toda a equipa que trabalha ao nosso lado, para que este espírito de entrega seja comum a todos, para que esta mensagem de “serviço” seja vivida com o mesmo entusiamo e alegria com que abraçamos no nosso trabalho. Passando por esta experiência, fica difícil não dar testemunho daquilo que fazemos, deixando claro em nome de Quem o fazemos.


Fig 5 – Grupo de colaboradoras (anos 20)

Este percurso acarreta algumas privações, a família testemunha isso mesmo. A medida que usamos para a nossa entrega ao outro, que nem sempre é o mais próximo, tem alturas que nos afasta de casa. De repente, a nossa família não é só a que partilha o mesmo sangue. Criamos genuinamente irmãos em Cristo. Passados alguns anos, consola-me ver como a minha própria família também acaba por comungar desta mesma forma de estar. Nunca estive sozinha neste caminho.

Faz parte do nosso trabalho contagiar e transformar os corações dos que nos rodeiam, com a consciência que a realidade é mais forte do que a ideia e é assim na realidade que somos chamados a agir. A dar testemunho com a nossa vida, a mostrar que o amor não se esgota porque também o recebemos sem medida.


Fig 6 – Abraço de um idoso (anos 20)

É grande a recompensa quando vimos uma criança que corre para o nosso colo, um doente que sofre as suas dores, mas nos dá um sorriso, um idoso com as suas amarguras de uma vida difícil, mas que nos dá um abraço, os desamparados e esquecidos pela sociedade, que nos dão os bons dias e nos perguntam pela nossa família, isto faz aumentar a nossa força reconhecendo que estamos no caminho certo.


Fig 7 – Grupo de idosos e crianças (anos 20)

Hoje, passados tantos anos muita coisa mudou, para apoiar é preciso ter um cartão de cidadão com número da Segurança Social, mas, no entanto, as necessidades não mudam, pois continuamos a atender muitos que nos batem à porta. Alguns, sobretudo os mais desprotegidos vêm sem qualquer documentação, outros com vergonha de falar da sua vida, ou porque abandonados pela família ou viciados e sem morada, sem telemóvel, sem nada para os podermos contactar, são estes que mais precisam de alguém que lhes dê a mão. É nossa missão não fazer juízos, mas acolhê-los com dignidade, resolvendo ou encaminhado conforme as situações. Hoje procurar inverter estes casos, torna-se um longo caminho a percorrer. 

Mesmo em tempos inesperados, como este que estamos a passar (no contexto da pandemia), tivemos de nos adaptar a mudanças, aumentámos as nossas refeições sociais para o dobro, redobrámos o nosso apoio ao domicílio. À nossa equipa que deu horas do seu tempo, juntaram-se voluntários e pontualmente alguns amigos e familiares. Podemos orgulhar-nos que a missão continua viva e enraizada em toda a equipa.

Fig 8 – Voluntária no Centro de Dia (anos 20)

Em todos estes momentos reconhecemos a Graça do Senhor, que dá a coragem de enfrentar todos os desafios que encontramos pela frente, por vezes caminhos difíceis, que aos nossos olhos parecem impossíveis, mas por isso Lhe dizemos que confiamos n’Ele, que não desistimos e estamos dispostos a lutar todos os dias. É com esta certeza, de que Ele nos acompanha sempre e que o sofrimento não traz desespero, mas sim esperança.

Resta-nos preparar um caminho que continue para além de nós, pois inquieta-nos saber que ainda há tanto por fazer.
Por Maria do Carmo Campelo Ribeiro, dirigente da Assistência Paroquial de Santos-o-Velho


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