“Falhar melhor”?

Autor: Pe Pedro Quintela

“Falhar melhor”?

1. Julho de 2020. Algures no Douro. 27 homens. Dentre estes, 22 ex-toxicodependentes e alcoólicos em tratamento na comunidade terapêutica do Vale de Acór. Os restantes 5 são terapeutas e colaboradores da mesma Associação. Todos participam no acampamento anual que acontece habitualmente por esta altura. O mais das vezes, também, nestes recônditos lugares. Não podíamos deixar de o fazer, mais ainda este ano. Depois do confinamento, há que aproveitar para sair a campo aberto e respirar a plenos pulmões. Olhar para o mundo e relembrar que a natureza, a criação, é uma coisa boa. E regressar ao fundamental: à intensidade da vida, e portanto da palavra partilhada — em verdade. À vida de relação — em verdade. Ao compromisso de todos com todos em ordem à mudança. Fazer aliança da liberdade de cada um com o bem maior de cada um. E de todos.


2. O bem é fácil de identificar! O bem é sempre aquilo que nos faz bem. É parente próximo da alegria. De facto, se a experiência do prazer permite dizer-me satisfeito, pelo menos numa parte de mim (atente-se, à gula que deixa contente o estômago mas nem sempre a consciência razoável do que se sabe sobre a própria saúde...), a alegria quer mais. Deseja estar bem em tudo o que a pessoa é. Portanto, estar contente não porque se evadiu da sua vida mas porque o presente preenche de sentido “a minha pessoa”, carne e osso, memória e porvir, valores e escolhas, convicções e decisões.

3. “Falhar melhor”. Foi este o tema proposto para os EDM’s (“encontros da manhã”) em cada um dos dias desta semana de acampamento. É assim que designamos as assembleias em que nos pomos a partilhar, uns com os outros, sobre o dentro da vida. Demorada, intensa e, também, provocadoramente. A ouvirmo-nos com seriedade. E a confrontarmo-nos. Não se trata de um acampamento de garotos “mirim’s”. Há que caminhar fundo em nós mesmos. Visitar os lugares não recomendáveis que nos habitam. Combater a evasão pessoal. Regressar lá onde dói. Enfrentar os nós cegos que impedem de sermos nós próprios. Portanto, abrir janelas que dêem sobre a realidade das coisas. Olhar as promessas que a luz traz sempre consigo. Agarrar o sentido de tudo, descobrir o gosto de con-viver, querer existir com sentido.


4. Mas retomo o tema: “Falhar melhor”. Trata-se de uma citação de Samuel Beckett, de um dos seus últimos textos dramáticos “Pioravante marche”. Vale a pena ouvi-lo desenvolver a ideia: “... Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.”

5. Pois bem: à beira Douro juntam-se perto de 3 dezenas de pessoas. Grandes especialistas em somar derrotas. Experiências pessoais desastradas. Destroços — muitos — frustrações e fracassos em abundância. Juventude desperdiçada, vidas aos solavancos por entre uma dor que geme vergonha. Famílias desagregadas, percursos na justiça — eufemismo para dizer tempos passados na prisão — saúde de rastos, relações de trabalho o mais das vezes de má memória, rostos velozmente envelhecidos... Para quê, então, insistir na pesada nota do falhanço, no fracasso, junto de quem conhece de cor as cruéis declinações do tema?

6. Prevenir-se das vidas reféns de respostas mecânicas. Proceder por paradoxo. Dizer irónico a vida, despertar perplexidades. Colocar a liberdade face ao labirinto. Tortuosos caminhos. Também os do descobrimento de caminhos libertadores. Não facilitar, não artificializar, não frivolizar. Não falsificar oferecendo um cartão-passe feito de slogans: não permitiria o regresso a casa, encontrar casa. É preciso pisar as pedras do caminho, escolher por onde ir e resistir, numa decisão de vida que não se oferece sentimentalmente. “Tenho direito a ser feliz” ou “vai ficar tudo bem” são belos sonhos. E o que já aconteceu na vida? E as minhas de-cisões no presente? E os outros, abandonados, servidos? e o sentido e o significado?, con-vivo com apetites ou vou mais longe demandando a verdade?...

“Falhar melhor” como desafio ao protagonismo de cada um, capaz de tomar posição. De reorientar-se. Por conseguinte, como apelo também a relativizar discursos catástrofe. Conter discursos e pensamentos autodestrutivos. Olhar doutro modo o abeirar-se, e mesmo o mergulhar, no abismo — em absoluto não o absoluto. Talvez à boca dele, do abismo, ou dentro dele, o encontro que salva! Mesmo a morte dos que me são queridos, mesmo a morte dos que são parte fundamental da minha vida, como circunstância que me permitirá finalmente re-viver. Ah, e então a morte, a minha própria morte, como desconsiderar este facto inultrapassável?! Bom, já lá vamos.

É preciso pisar as pedras do caminho, escolher por onde ir e resistir, numa decisão de vida que não se oferece sentimentalmente

7. Por ora, chamar a atenção para que “nunca ter falhado” é, o mais das vezes, como que o sinal de outro tipo de fracasso humano. Esse de nunca ter tentado e ousado, com liberdade e denodo. Miopia de horizontes nunca além das epidérmicas comichões do eu. Pusilanimidade. Atender também ao orgulho que finge em tudo não fracasso. Parasita do real a paralisar qualquer iniciativa. Não admirar o longe. Desviver a vida. Insultar o real como injusto. Declamar ressentimentos em nome de uma justiça que real ou pretensamente me deveria ter sido feita. Outra coisa o dispor-se — renascido valente face aos dissabores da vida — e retomar firme a decisão de reconstruir(-se) e de tentar outra vez, melhor (pequena nota: por ora ainda não me vejo na necessidade de incorporar no meu vocabulário o neologismo ‘resiliência’...).

Discernir razoavelmente com quem quero ir! Eleger onde quero morar, escolher o regime alimentar. Não mais fugir de mim, não mais declinar responsabilidade e dizer-me teimosamente “melhor alienar-me!”. Perceber a diferença entre destruir e existir. Portanto, perceber que consigo destruir(-me). Mas que outra coisa é existir, eu e os que me são queridos. Ou ainda, mais cruel, aqueles que destruí, eu próprio!

Mesmo morrendo, a memória de ti, de mim, resiste. Boa, má? Persiste, sim, não só como memória mas também com o nome daquela realidade opaca, mas perene, a que chamamos alma. Ninguém pode cancelar a existência de ninguém: nem a violência, nem a maldade, nem os crimes, nem o cansaço, nem o tempo. A memória dos outros visita-nos. Tantas vezes para nos consolar, tanto. Outras para nos inquietar e aguçadamente destruir-nos. Somos muito para além da aparência, dos títulos de propriedade e sucesso que mostramos, da saúde que temos ou que nos escapa. Sim, creio que a grande vitória sobre todos os des-astres, é a gozosa relação com o redentor Astro. Descoberta, tangibilidade, de que há luz e trevas. Que a luz nunca será minha mas que está disponível. Luminosa e simples ¬— como o amor, a humildade, a delicadeza, o cuidado do outro que sofre tanto ou mais do que eu. Nas horas de desastres, sair de casa e pôr-me a caminho, do outro. Quanto gente mais humana depois de grandes desencontros humanizadores?

Somos muito para além da aparência, dos títulos de propriedade e sucesso que mostramos, da saúde que temos ou que nos escapa

8. Tudo isto no texto de Beckett? Obviamente que não. Mas obviamente, também, passível de ser indiciado, sugerido e conversado a partir da formidável porta que o seu génio e densidade pessoal nos facultam.

Daí, eis-me finalmente chegado ao ponto! Convidado a escrever “3 a 5 páginas A4”, no âmbito da proposta “Líderes” no directório da Plataforma do 3º Sector, parece-me valer a pena deter-me em torno deste modo de ser nomeado: Leader?

Bem sabemos que se trata de um termo hoje em dia universal. Ainda assim, parece-me que se nos aproximarmos do seu significado mais profundo seremos surpreendidos. Todos sabemos tratar-se de uma palavra inglesa. E que deriva de um verbo que significa “dirigir, ir adiante, guiar”. Conceito próximo, portanto, de uma palavra alemã de igual modo de uso muito generalizado, “leitmotiv”, aquele ‘motivo’ que, ao que parece desde Wagner, guia uma peça musical, e por analogia, um discurso ou qualquer outra manifestação de persistência de um tema.

Mas há mais. É seu parente um neologismo recentíssimo, embora mais antigo do que a recente crise do coronavirus, a “lemologia”, ou seja o estudo das pestes (loimós, em grego). De facto, trata-se também e de algum modo daquelas realidades que estão adiante do saber, à sua frente, mas dolorosamente ainda não ao alcance de soluções técnicas... Ora parece que todos estes termos (líder, leitmotiv, lemologia) remontam a uma raiz arcaica (leith) que significa “sair” e também “morrer”...

9. Mas prolongo a atenção aos conceitos: “3º Sector”. De que se trata? São essas organizações inúmeras, nascidas pela iniciativa de algumas pessoas a favor de muitas outras, da sociedade e, consoante a escala, capazes mesmo de favorecer as relações entre Estados; organizações a crescerem e desenvolverem-se ágeis, ou após anos de desempenho da sua missão própria, cansadas; precoces em relação ao diagnóstico e intervenção face às inquietações da sociedade, mas também, aqui e ali, tomadas de tédio e atrasadas; atentas e precisas nas suas competências e respostas, embora por vezes dispersas; sempre vitais, porém, na criação e valorização de vínculos de serviço, de coesão entre as pessoas e organizações, maiores do que o business as usual ou das tendências hegemónicas do Estado em relação às organizações de base da sociedade. Portanto, 3º Sector, como sector decisivo para que o mundo seja mais do que a actuação e regência unilateral da actividade económica em vista de realização de capital e lucro, o qual sendo naturalmente legítimo, de modo algum poderá ser socialmente monopolista das iniciativas sociais. 3º Sector, de facto, como sector desafiante do Estado, ultrapassando a sua tentação de controlar toda as intervenções na vida da comunidade, através de programas e regulamentos excessivamente centralizados e burocráticos.

sector desafiante do Estado, ultrapassando a sua tentação de controlar toda as intervenções na vida da comunidade

10. E permito-me bendizer o Senhor! Antes demais pela gratuidade associada à beleza do bem-fazer manifesta na existência e vitalidade do 3º Sector. A sinceridade das coisas belas, de um modo outro realizadas por quem é capaz de se motivar pela fragância e, portanto, por atracção: seja o cheiro da dor, do sofrimento, mesmo da violência e das ruínas; seja a experiência da solidão e do tédio — própria, dos próximos e dos outros em relação a quem deu origem a uma determinada resposta social; seja um original projecto que rompe com a longa distância, ou isolamento, que dificultam a vida concreta, daquela família ou naquele bairro; seja a falta de recursos públicos, tantas vezes ultrapassado pela mobilização alcançada em torno, por exemplo, de uma ideia piloto bem concretizada, numa ONG ou num IPPS; seja, também a resposta ainda não ensaiada por quem tem responsabilidades públicas e que deveria ter avançado. Acrescento ainda uma determinada emergência e os pioneiros que daí haviam avançaram com uma determinada iniciativa uma de se colocar ao serviço da comunidade e que o tempo longo das diversas esperas não desmotivou; gente capaz de antecipar respostas, conhecendo a aflição de quem muitas vezes não se consegue organizar em favor de si mesma; pessoas com o desejo de bem servir, de servir quem não se sabe servir, do Estado ou dos negócios; organizações criativas que comprometias com o real sabem escalar janelas e forçar portas onde a inércia as mantinha fechadas; iniciativas nascidas de uma grande dor familiar que, por vezes, determinou com urgência de coração abrir aos outros uma casa, tornada assim casa para outras dores deste modo acolhidas e cuidadas...

gente capaz de antecipar respostas, conhecendo a aflição de quem muitas vezes não se consegue organizar em favor de si mesma

Sim, bendito seja Deus, pelas organizações que se constituem para liderar processos, para melhorar serviços. Serviços que sabem organizar-se muito bem, serviços de proximidade, serviços acessíveis no preço, serviços que sabem tomar iniciativas que garantam a sua sustentabilidade — tema maior na ordem da responsabilidade, que certifica as iniciativas organizacionais e os seus projectos como mais do que generosidades e fantasias provisórias, como realidades consistentes e resistentes face aos desafios que por todos os lados se lhes colocam: valores e sentido do bem comum; do bem maior; motivação; desenvolvimento e respostas adequadas; capacidade de gerar riqueza suficiente e superlativa para continuar a desenvolver os seus projectos com competência, qualidade nas quais se inclui, em muitas organizações, a qualidade dos equipamentos. Bendito seja Deus, por tanto e por todos os que assim lideram iniciativas mil que no seu cuidado pela Casa Comum, como gosta de lembrar o Papa Francisco, tornam o mundo mais habitável.

11. Líder do 3º Sector? Talvez na redundância e insistência em repetir o leitmotiv: temos que cuidar do homem, mas do homem todo. Que ele tenha uma casa digna. Essa onde há pão a horas e horas para conviver! Não ao isolamento, seja qual for a modalidade em que este se apresente e se esconda... A vida de trabalho e a vida comum e quotidiana desabitada de pessoas, no excesso de individualismos e de gente que se cruza na cidade mas que vive desligada; as info-competências confundidas com uma casa habitada. Testemunhar que não se vive só do lado de fora, e como utensilio “útil”: afectiva ou profissionalmente. Que as pessoas também por dentro deverão receber visitas. Convidar a interiorizar. Perceber que interiorizar não é o mesmo que concentrar-se mas, isso sim, caminhar da exterioridade ao silêncio do encontro — com o sentido, com a verdade das coisas e das experiências.

Acresce que, para mim, liderar é um indicador do que a palavra no mais fundo de si mesma nos sugere: desse ir à frente dando vida, dando a vida, vencendo uma outra pandemia, bem antiga, essa do individualismo e das estratégias de autojustificação e fechamento ao apelo do outro.

ir à frente dando vida, dando a vida, vencendo uma outra pandemia, bem antiga, essa do individualismo e das estratégias de autojustificação e fechamento ao apelo do outro

12. O Rafael. O pai morreu tinha ele a tenra idade de 14 anos. Antes, a situação de alcoolismo e desaforos praticados pelo pai tinham-no impedido de ser garoto. A vida comum implodira e o que restava de encontrões de uns aos outros era muito pouco ‘família’. A própria mãe fugira. Dos seus filhos. E de si mesma, para sempre. Desde então vivera sozinho e estragara-se abundantemente junto de outros como ele, meio marginais. Aos 18 procurou-nos. Esteve connosco uns bons meses. Depois abalou, como diriam os seus familiares alentejanos. Regressou agora, por estes dias, 13 anos depois. Conversas muito desencontradas. Não sabe bem o que quer. Mas relembra o acampamento em que, então, participou. Cita a frase que serviu de lema nessa altura: “as pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca se acabam” (Almada Negreiros). Fiquei impressionado com a sua memória. Nela guardava uma frase luminosa, creio que muito apontada à esperança, a não aceitar acabar. Também manifestação enviesada de que falhou e que, de facto, não quer acabar. E que agora nos procura para melhorar. E que precisa de ajuda para melhorar. E que a melhor ajuda é desde logo deixar de se entrincheirar isolado, falso líder de si mesmo, e persistir a reerguer-se em comunidade. Admiração intensa. A minha, por este amigo que, não obstante tanto, não quer acabar, quer melhorar!

Admiração intensa. A minha, por este amigo que, não obstante tanto, não quer acabar, quer melhorar!

13. Eis-me chegado ao fim. Alguma conclusão? Bom, quando se trata de um texto do tipo daquilo que me foi pedido (quase me sinto a escrever um mini ensaio...) prefiro as “alusões”, ou mesmo e apenas a “evocação” de outras maneiras de pensar e dizer: percursos diversos visitados de um modo que se pretende diverso, aflorar ideias mais do que o escrever um manual de boas práticas e de funcionamento do quer que seja. E convidar todos os que hipoteticamente o venham a ler a visitarem belas paisagens. Pretendo-as amplas no sentido mais rico da palavra católico. Apontadas ao real e panorâmicas. Por estranho que possa parecer às opiniões predominantes, mas de um modo consequente com a fé dos cristãos, desentendo-me com as utopias. Estas preferem o sonho à realidade, e à positividade da mesma. Pela minha parte acolho inteiro a circunstância do tempo presente. Este o momento da história que me foi dado viver. Mais infectado, menos infectado, certo é que a sucessão dos dias reclama a minha concreta, e circunscrita, contribuição para seguirmos adiante. Daí este texto sem um propósito “cientifico e sistémico”, sobre o modo como vivo a responsabilidade que me é pedida no Vale de Acór— Porta de Esperança. Espero que não, por isso, que por ser menos académico, seja considerado menos real e consistente. Na verdade, há mais realidade do que aquela que os números contabilizam e os modelos interpretativos propõem. Objectivo alcançado? A benevolência e o interesse, ou o desinteresse e fastio, dos eventuais leitores logo o dirão.

Por Pe Pedro Quintela, Presidente da Associação Vale de Ácor

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