Economia do Cuidado: repensar a sustentabilidade da vida

Autor: Graça Rojão

Economia do Cuidado: repensar a sustentabilidade da vida

Introdução

Pretendemos debater aqui a posição privilegiada que as organizações de economia social e solidária podem ocupar na defesa de uma proposta de mudança societal centrada no cuidado. Essa proposta terá de reconhecer a nossa dupla condição de seres ecodependentes e interdependentes e de colocar a sustentabilidade da vida humana e não humana no centro de uma economia, entendida aqui na sua acepção mais ampla, isto é, como campo de provisão.


O cuidado como condição humana

O foco no cuidado permite reconhecer que a vulnerabilidade dos corpos faz parte da nossa existência e contraria a perspectiva dominante, mais individualista e mercantilizadora da vida, que assenta na fantasia de que todas as nossas necessidades podem ser satisfeitas através do consumo (Atienza et al. 2019).

Os cuidados são basilares no nosso bem-estar individual e colectivo. Não são algo passageiro ou que possamos restringir quer a fases da vida específicas, quer a problemas de saúde particulares. Não podemos também reduzir os cuidados à problemática da prestação de apoio social a pessoas dependentes, por exemplo uma situação de doença ou uma determinada fase da vida, como a infância ou a velhice. Ninguém é absolutamente autónomo e a necessidade de cuidados reside na interdependência e na vulnerabilidade inerentes à própria condição humana.


Cuidado de si, das outras pessoas e do planeta

O carácter universal do cuidado exigiria que este fosse gerido como responsabilidade colectiva (Prieto & Serrano: 2015). Não obstante, as políticas públicas não lhe conferem essa dimensão central na criação de bem-estar, como é patente no facto da rede de equipamentos sociais do Estado ser assumida mais como um complemento que como uma provisão estruturante face ao esforço das famílias, especialmente daquelas que não conseguem assegurar sozinhas os cuidados (Coelho, 2011). Reconhecer e assumir a imprescindibilidade dos cuidados para a sustentabilidade da vida é considerar que estes devem ser entendidos como um direito e não como um privilégio. A criação de um ambiente de corresponsabilidade social pressupõe a partilha dos distintos trabalhos de cuidados que são necessários para suster a vida nas suas diferentes etapas, entre todos os actores da sociedade.


Reconhecer e assumir a imprescindibilidade dos cuidados para a sustentabilidade da vida é considerar que estes devem ser entendidos como um direito e não como um privilégio.


Sempre que o investimento em políticas públicas de educação, de saúde, de apoio à velhice ou à infância sofre contrações, algo que o horizonte da crise económica desencadeada pela actual pandemia pode acentuar, a prestação pública e não lucrativa de cuidados também corre o risco de se contrair, quer em quantidade, quer em qualidade. Quando passam a ser organizadas sob a lógica estrita do mercado, como destaca Scholz (2013), as actividades que exigiam “gastar tempo”, passam a ser orientadas para “poupar tempo”. Cristina Pereira alerta que “é preciso desafiar a ideia de que o Estado deve ter um papel reduzido na provisão de bens e serviços sociais com base na presunção de que alguém os continuará a fornecer numa base não remunerada ou de que o mercado gerará as respostas necessárias” (2013: 160). Quando a responsabilidade pelos cuidados é transferida para o mercado e para as famílias, as injustiças sociais agravam-se, na medida em que o acesso passa a ser condicionado pela capacidade aquisitiva. Os agregados familiares com menor poder económico deixam de poder usufruir de cuidados com qualidade. Por outro lado, quando a transferência de responsabilidades é feita para as famílias, importa discutir quem, dentro delas, assegura efectivamente estas tarefas. Quando as famílias têm de assumir a responsabilidade de garantir os cuidados, as suas cargas não são repartidas igualitariamente por todos os membros, na medida em que são as mulheres, sejam mães, avós ou irmãs quem maioritariamente os desempenha. Aliás, mesmo quando os cuidados são garantidos com recurso ao mercado, são assegurados sobretudo pelas mulheres. A desigualdade posicional das mulheres agrava-se em consonância com a escassez de capacidade económica para comprar no mercado bens, contratar externamente serviços ou adquirir equipamentos que mecanizem as tarefas e esta desigualdade é uma das raízes em que também assenta a quebra da natalidade que vivemos e que em Portugal é particularmente notória.


Para uma sustentabilidade integral

A grave crise ecológica que enfrentamos é possivelmente um dos desafios do século XXI mais decisivos para a sobrevivência da humanidade e está patente nas alterações climáticas, na perda de biodiversidade, no esgotamento de recursos naturais e de matérias-primas energéticas, na crise do Estado-Nação ou na injustiça social que rege a distribuição da riqueza, já que 1% da população mundial concentra actualmente 80% da riqueza total.

Esta Era designada por Antropoceno, em que os humanos se tornaram uma força geológica capaz de alterar o clima, não corresponde a uma crise cuja luz ao fundo do túnel vislumbremos. A história humana é parte da história da vida do planeta e o aquecimento global põe em causa não apenas o planeta geológico mas as próprias condições essenciais à continuidade humana e à vida, tal como esta se desenvolveu durante o Holoceno.


A história humana é parte da história da vida do planeta


Somos seres interdependentes, uma vez que precisamos do cuidado das outras pessoas para viver e somos também seres ecodependentes, porque para respirar, comer, beber, habitar e, em última análise, viver, dependemos da natureza (Atienza et al. 2019).

Cuidar da sustentabilidade da vida exige pois que cuidemos não apenas da vida humana mas sim de todo o planeta, o que implica uma vida colectiva menos depredadora dos recursos naturais, menos consumista e menos poluidora. Numa altura em que se avizinham níveis de desemprego elevados, seria de esperar que a crise ecológica que o planeta enfrenta fosse tida em conta pelas políticas públicas e que estas apostassem mais na valorização da economia do cuidado, absolutamente fundamental ao bem-estar de todos nós e com escasso consumo de recursos naturais, em detrimento das propostas de criação de emprego através da construção de infraestruturas ou da manutenção de actividades económicas supérfluas, amplamente consumidoras de recursos naturais e cujos benefícios não têm sido repartidos de modo socialmente justo.


Porquê as organizações de economia social e solidária

O tecido organizacional que situamos no campo da economia social e solidária, ainda que constitua um conjunto heterogéneo e orientado por princípios diversos, partilha de uma outra racionalidade económica, bem diversa daquela que preside ao mercado e dá conta da imprescindibilidade de formas associativas que reconheçam valores não estritamente mercantis, produtivistas e consumistas, como o cuidado, a cooperação económica, a participação democrática e a reciprocidade.

A economia social e a economia solidária, ao colocarem no centro da sua acção o cuidado, assumem uma posição privilegiada para propor também um modelo societal onde economia e ecologia não se oponham e onde não tenhamos de escolher entre salvar a economia ou salvar as pessoas, como se de realidades independentes se tratasse.


Conclusão

Os cuidados não correspondem de forma alguma à totalidade do sistema económico mas assumem no seu seio um lugar estratégico porque todos e todas precisamos deles ao longo da vida. O velhíssimo, mas actual relatório da Comissão “Cuidar o Futuro” (1998) a que Maria de Lurdes Pintassilgo presidiu, refere que “o cuidado - para com nós próprios, uns para com os outros, e para com o ambiente em que vivemos - é o único fundamento seguro para a melhoria sustentável da qualidade de vida”.

Ainda que o bem-estar possa assumir significados muito diversos para cada pessoa, há sem dúvida traços comuns e entre eles o direito a cuidar e a ser cuidado bem como o direito a um ambiente saudável são certamente fundamentais.


“o cuidado - para com nós próprios, uns para com os outros, e para com o ambiente em que vivemos - é o único fundamento seguro para a melhoria sustentável da qualidade de vida”


As organizações de economia social e solidária, porque se alicerçam numa matriz centrada no cuidado, onde a preocupação determinante é garantir bem-estar e não o lucro, podem pois ser mais facilmente capazes de reagir à lógica mercantil que tenta colonizar todos os aspectos da nossa vida. Podem assumir a solidariedade e a cooperação como dimensões norteadoras da acção e podem defender uma outra ecologia, mais integral, onde cuidemos de nós, das nossas comunidades e do planeta, criando uma nova responsabilidade social pela sustentabilidade da vida.


Por Graça Rojão, fundadora e dirigente da CooLabora – Intervenção Social


Bibliografia

ATIENZA, M. et al. (2019). Guía de análisis de prácticas de corresponsabilidad en la economía social y solidaria. Madrid: Mares [ebook]

COELHO, L. (2011). Mulheres e Desigualdades em Portugal: conquistas, obstáculos, contradições e ameaças. E-Cadernos do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Comissão Independente População e Qualidade de Vida. (1998). Cuidar o futuro: Um programa radical para viver melhor. Lisboa, Trinova Editora.

PEREIRA, Maria Cristina S. (2013). Mulheres, Trabalho e Cuidado. A Construção da Igualdade na Intersecção dos Mundos Privado e Público na UE. Tese de doutoramento, Universidade de Coimbra. Retirado de http://hdl.handle.net/10316/24276

PRIETO, L. P., & Domínguez-Serrano, M. (2015), Una reformulación feminista del Decrecimiento y el Buen Vivir. Contribuciones para la sostenibilidad de la vida humana y no humana. Revista de Economía Crítica, nº19: 34 - 57

SCHOLZ, R. Feminismo–Capitalismo–Economia–Crise: objecções da crítica da dissociação-valor a algumas abordagens da actual crítica feminista da economia [Exit!, 2013].

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